Vamos falar sobre os torcedores organizados de Minas Gerais?
por Silvio Ricardo da Silva
As torcidas organizadas de futebol são tematizadas desde seu surgimento no final dos anos 1960 e início dos anos 1970. Inicialmente, foram destacadas pelos meios de comunicação em geral, e só no início dos anos 1980 é que o meio acadêmico inicia seus estudos, tendo como objeto de análise essas agremiações. Contudo, durante mais de duas décadas as pesquisas sobre Torcidas Organizadas estiveram centradas e referenciadas sobre o que acontecia no eixo Rio-São Paulo.
Esse fato pode ser facilmente explicado em função do pioneirismo das Torcidas Organizadas do Rio de Janeiro e de São Paulo entre os anos de 1960 a 1980, assim como do protagonismo de alguns Programas de Pós Graduação de Universidades dos dois estados, que se interessaram pela temática.
A partir dessas respectivas influências, vimos o número de Torcidas Organizadas crescendo Brasil a fora, assim como o interesse de pesquisas sobre elas. Assim aconteceu em Belo Horizonte, mais especificamente através do Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT) da UFMG, que em 2008 iniciou uma pesquisa acerca dos Torcedores Organizados de Minas Gerais e publicou os resultados no livro Futebol nas Gerais. O objetivo dessa pesquisa foi fazer um levantamento e análise de Torcidas Organizadas de Minas Gerais, assim como, apresentar o perfil dos Torcedores Organizados de Belo Horizonte.
Esse estudo teve a duração de um ano, sendo iniciado em agosto de 2008 e encerrado em agosto de 2009. Teve como objetivo conhecer como se davam a manifestação, a organização e as relações estabelecidas intra e intertorcidas, com o clube e a sociedade de TOs, dos três times mineiros participantes da Série A do Campeonato Brasileiro de Futebol de 2008: Clube Atlético Mineiro, Cruzeiro Esporte Clube e Ipatinga Futebol Clube. Metodologicamente, optamos pela elaboração de uma entrevista semiestruturada, que seria aplicada a diretores das 12 TOs selecionadas para a participação no estudo (cinco do Atlético, cinco do Cruzeiro e duas do Ipatinga). Além disso, foram realizadas visitas aos estádios Governador Magalhães Pinto – Mineirão, em Belo Horizonte – e Epaminondas Mendes Brito – Ipatingão, em Ipatinga. Como resultados, em relação inicialmente às manifestações, elencamos alguns itens que poderiam nos auxiliar no entendimento sobre a atuação das TOs nos jogos. São eles: os símbolos, as camisetas, as bandeiras e faixas, as manifestações musicais e os trajetos para o estádio. Em relação aos símbolos, constatou-se que a escolha destes não se dava de forma aleatória. Tal escolha respeita simbolismos presentes na história da torcida e ideologias compactuadas pelos membros. Os símbolos são compostos por elementos alusivos ao clube, como suas cores, sua mascote, seu escudo, e por elementos representativos para a torcida, podendo ser ideologias defendidas ou expressão de vínculos alheios ao futebol. As camisetas possuem, dentro das agremiações investigadas, uma multiplicidade de usos. Servem como suporte para os símbolos e elementos representativos para a TO; são utilizadas como forma de manutenção financeira quando comercializadas e para a identificação dos torcedores pertencentes a um mesmo grupo, seja dentro do estádio ou nos trajetos.
As bandeiras utilizadas pelas TOs durante a realização da pesquisa foram duas: as colocadas em frente à arquibancada, dependuradas durante todo o jogo (faixas), e as erguidas sob a cabeça dos torcedores e utilizadas apenas em momentos importantes da partida (bandeirões). Apesar de apresentarem, na maioria dos casos, apenas o nome da agremiação, as faixas, em alguns detalhes e simbologias, apresentam traços de manifestações culturais identitárias dos membros da torcida que podem representar outros elos de união e afinidade entre eles, que extrapolam o próprio clube. Já os bandeirões representam força da TO tanto para os rivais quanto entre as torcidas do próprio clube, sendo compostos pelos símbolos da equipe, da torcida e por frases comuns nos gritos de guerra de cada agremiação. As manifestações musicais são formas tradicionais utilizadas pelas TOs para evidenciarem-se tanto dentro do estádio quanto nos trajetos. São comumente associadas a gestos e performances coreográficas e à utilização de bandeiras. Além disso, ressalta-se que estas são observadas de forma mais latente em momentos-chave do jogo. Uma particularidade percebida na cidade de Belo Horizonte no que se refere às TOs é a existência de trajetos específicos para dirigir-se para o estádio nos dias de jogos. Foi constatado que, em jogos do Atlético, os torcedores dirigem-se ao estádio preferencialmente pela Avenida Presidente Antônio Carlos, ao passo que, nos jogos do Cruzeiro, os torcedores dirigem-se preferencialmente pela avenida Presidente Carlos Luz. Vale ressaltar ainda que tais trajetos são parcialmente respeitados, mesmo em dias de jogos que envolvam apenas uma das equipes, sendo notado no trajeto tradicional da torcida da equipe mandante um movimento maior do que no trajeto tradicional da torcida rival. Dentro da organização das TOs, um item que tende a ser fundamental no estabelecimento das dinâmicas da agremiação é a existência de sedes. Nesse aspecto, percebemos que, das 12 TOs investigadas, nenhuma possui imóvel próprio que fosse utilizado como sede. Contudo, seis delas possuem locais de referência estabelecidos, sendo casas de presidentes ou diretores, salas nas quais se guarda o material da TO nos estádios, imóveis alugados, ou até mesmo a internet.
Critérios para filiação diversos foram adotados entre as agremiações. Enquanto algumas exigem apenas o preenchimento de ficha de cadastro para a confecção de uma carteirinha, outras exigem atestados de bons antecedentes, realizam análise de comportamento dos interessados durante um período, no qual é observado o comportamento durante o jogo, interesse pela torcida e participação assídua e efusiva. Há ainda TOs que se identificam como grupos de amigos, nos quais a entrada está condicionada à indicação de um dos membros. Além disso, constatou-se que a participação em uma TO implica a aceitação de normas e ideologias as quais podem até extrapolar o futebol, que, mesmo não explicitadas oficialmente, induzem a seleção de membros em adequação com preceitos da agremiação. Exemplificando, existe uma TO que se identifica como um motoclube; assim um indivíduo tem que estar habituado a esse universo para pertencer à TO. Outra TO apresenta íntima relação com movimentos do rock and roll; dessa forma tal gosto musical acaba sendo implicitamente colocado como um critério de filiação. A manutenção financeira das agremiações também foi investigada durante o estudo. Constatou-se que a venda de materiais e suvenires foi a forma mais comum de arrecadação de fundos pelas TOs investigadas. Outras estratégias citadas foram a contribuição voluntária dos associados, a organização de festas e eventos e a cobrança de mensalidades e atividades prestadas nas sedes, como musculação e escolas de música e lutas. Outro dado importante desse estudo diz respeito aos estatutos das TOs. Observou-se que poucas torcidas afirmaram possuir tal documento, e nenhuma aceitou mostrá-lo. Entendendo esses como possíveis norteadores das ações das TOs, sua ausência ou ocultação pode levar a processos pouco transparentes conduzidos pela diretoria. As relações intra e intertorcidas foram estudadas a partir das divergências, conflitos e parcerias notados durante o estudo. Observou-se que a existência de conflitos entre torcidas de um mesmo clube tende a engendrar-se principalmente por questões políticas, ideológicas e pela disputa do capital simbólico de TO mais importante do clube.
As parcerias entre algumas TOs de clubes diferentes são motivadas pela lógica de receber as “torcidas-irmãs” em jogos na cidade de Belo Horizonte e de ser recebido por elas em jogos fora de casa. Algumas dessas parcerias acontecem normalmente entre torcidas nas quais os clubes tradicionalmente não são rivais, ou com os rivais dos rivais. Como exemplo, algumas torcidas organizadas do Cruzeiro, tradicional rival do Atlético, mantém parceria com as TOs do Flamengo, outro rival do Atlético. As relações entre as agremiações e os respectivos clubes revelaram-se distintas para os três exemplos do nosso estudo. Entre as torcidas do Atlético e o clube, revelou-se um contato incipiente com a diretoria dos clubes, não sendo prestado por parte do clube nenhum auxílio para a manutenção das torcidas. Nas agremiações do Cruzeiro, apesar de novamente não ser evidenciado nenhum auxílio financeiro, o clube realizava reuniões periódicas com representantes das TOs, nas quais eram definidas posições de faixas, possíveis campanhas de marketing e sanadas possíveis divergências. Dessa forma, o clube exercia um papel de mediador no contato entre suas TOs. Em Ipatinga encontramos o maior nível de envolvimento entre as torcidas e os clubes; foi notado um apoio, inclusive financeiro, para a manutenção dos grupamentos. Além disso, a torcida recebe subsídios para viagens, aluguel da sede, ingressos para jogos e brindes para rifas. Há ainda reuniões anuais, nas quais são definidos planos para o ano seguinte e como se dará o auxílio naquele ano.
Sobre o perfil das pessoas que compõe as Torcidas Organizadas de Belo Horizonte
No convívio social, é comum verificarmos a tendência de indivíduos realizarem generalizações e criarem estereótipos para grupos que não fazem parte e/ou não conhecem com profundidade. Tais generalizações potencializam a realização de interpretações equivocadas. Esse fato é comumente registrado em relação aos torcedores organizados, os quais possuem, no senso comum, um “perfil” muitas vezes atrelado à violência, marginalidade e problemas sociais, reiterado em veículos midiáticos, sem ter, no entanto, estudos que se proponham a conhecer a temática das Torcidas Organizadas, o que nos motivou ainda mais a conhecer o perfil de torcedores organizados na cidade de Belo Horizonte.
No que se refere aos instrumentos da pesquisa optamos pela elaboração de um questionário que deveria ser respondido pelos torcedores das TOs participantes da pesquisa. Esse questionário foi composto por dois momentos distintos: o primeiro, de dados pessoais, e o segundo, da relação do torcedor com sua torcida.
Inicialmente buscamos conhecer a idade dos torcedores. Para esse quesito, encontramos como valor mínimo 13 anos e máximo 77 anos; a média foi de 25,14 anos. O maior volume de torcedores foi registrado até 24 anos, com 172 sujeitos dentre os 308 totais (55,8%); 35,3% estão entre 25 e 35 anos; 7% entre 35 e 50 anos; e apenas 1,9% acima de 50 anos.
O sexo mais comum encontrado entre os torcedores organizados participantes do estudo foi o masculino (78%) e feminino (22%). É interessante ressaltar que tanto entre os mais jovens quanto entre os mais velhos os valores se mantêm na mesma média.
O estado civil dos torcedores também foi investigado no nosso estudo. Encontramos para esse item a maioria de respostas na alternativa solteiro (82%), sendo essa opção superior estatisticamente à soma de todas as outras: casados (14%), divorciados (3%) e separados (1%).
A renda dos entrevistados foi investigada, sendo uma opção a elaboração de faixas de renda dentre as quais os torcedores organizados deveriam selecionar a que sua renda pessoal estivesse enquadrada. A resposta entre um e dois salários mínimos foi a mais citada, contudo apresentando apenas 39% do total de respostas. Nesse item observa-se uma heterogeneidade entre os participantes dos torcedores organizados investigados, sendo notada a presença concomitante de indivíduos com renda mensal acima de 10 salários mínimos e indivíduos com renda mensal abaixo de dois salários.
A ocupação profissional dos torcedores organizados foi outra questão na qual se observou uma heterogeneidade grande de respostas. 23% apresentaram-se como estudantes, sendo a resposta mais comum. Outros itens muito selecionados estão relacionados com o setor de serviços (18%) e o setor comercial (14%).
Fechando a prosa….
Percebemos que visões mais genéricas e imprecisas do torcedor não nos remetem a um entendimento mais aprofundado do que realmente consolida o torcer e também acerca do perfil desses torcedores organizados. As pessoas e, neste caso, as torcidas e, olhando mais detalhadamente, as TOs têm características que as distinguem. Os fatores externos a que estão sujeitas podem intensificar ou amenizar, essas diferenças dependendo do conceito. Por esse motivo, as torcidas são um objeto em constante transformação, que não se consolidam de maneira aleatória, mas sim possuem “porquês” e “comos” que se relacionam diretamente ao perfil que possuem. O objetivo foi apresentar o perfil do torcedor organizado em Belo Horizonte. A intenção não é afirmar que existe um único perfil do torcedor organizado e nem que chegamos a uma resposta absoluta, pelo contrário. O perfil do torcedor organizado se dá em um espaço de complexas negociações simbólicas que se projetam para além da organização de dados e números. Diante de descobertas, desconstruções e alguns desencontros, foi possível perceber que, em meio à complexidade de elementos, podemos falar em “perfis” de torcedores organizados e que os resultados apresentam uma diversidade quando indicamos as análises desse perfil. A multiplicidade de elementos nos leva a perceber que esse é um primeiro passo para o conhecimento dos integrantes que fazem parte dessas agremiações, assim como para o subsídio de políticas públicas voltadas para os torcedores e o futebol em geral.
Mas chamando para uma nova prosa…
Passados doze anos da realização dessa pesquisa, temos uma nova configuração do futebol brasileiro, dos seus estádios, dos seus torcedores, dos procederes, dos seus torneios, etc.
Por conta disso, o GEFuT iniciou nesse ano de 2021 uma nova pesquisa, mais abrangente, que objetiva traçar um perfil atualizado das Torcidas Organizadas e dos coletivos de torcedores do Brasil, buscando compreender suas dinâmicas e multiplicidades frente ao contexto do Brasil atual.
Para tal, solicitamos o apoio de todos companheiros e companheiras que compõe as torcidas organizadas e os coletivos, no sentido de termos mais elementos na reivindicação dos direitos dos torcedores e das torcedoras e na perspectiva de um futebol brasileiro mais inclusivo.
(*) Professor Silvio Ricardo da Silva, Departamento de Educação Física da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional da UFMG, Coordenador do Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFUT)
@silvioricardo1898