Projetos sociopedagógicos como estratégia de prevenção da violência: memórias de uma viagem
por Rosana da Câmara
Quando o assunto é prevenção da violência no futebol, a referência tem sido o modelo adotado pela Inglaterra. O famoso Relatório Taylor foi escrito após tragédia de Hillsborough, em abril de 1989, quando 96 torcedores do Liverpool morreram. Para evitar tragédias como essa, o documento fez uma série de recomendações que impactaram a experiência do torcer, transformando o futebol num espetáculo para ser apreciado, mais do que vivido. Do ponto de vista das medidas de segurança, ainda que se observem avanços no que diz respeito ao policiamento e à estrutura física dos estádios (mais confortáveis e seguros) –, elas ainda se apoiam num paradigma repressivo e reativo, que não foi capaz erradicar o fenômeno do hooliganismo, que permanece presente nas divisões inferiores.
Por outro lado, modelos sociopedagógicos pautados em programas de assistência social envolvendo organizações torcedoras têm se constituído em uma alternativa desenvolvida em vários países como atestam os casos do Fan Coaching belga, do Progetto ultra italiano e o Fanarbeit suíço.
Contudo, o Fanpropjekt alemão segue sendo o modelo de referência, tendo em vista a sua capacidade de oferecer propostas adequadas às mudanças observadas no futebol, acumulando experiências importantes nas ações formuladas visando à mediação de conflitos envolvendo torcedores hooligans e ultras. Desde o primeiro projeto implantado na cidade de Bremen, em 1981, estabeleceu-se um diálogo importante com o campo acadêmico, que resultou em trocas e na formulação de trabalhos com as juventudes locais. Os Fanprojekte são financiados pela Federação Alemã de Futebol (DFB), pela Liga Alemã de Futebol (DFL), pelos municípios e estados e contam com o apoio de educadores sociais e assistentes sociais. Estes realizam uma gama variada de atividades, tais como palestras, reuniões, excursões, intercâmbios, torneios. Auxiliam na produção da festa nos estádios, na organização de eventos e campanhas que contribuem para lidar com questões como o racismo, a homofobia e o sexismo. A mediação com as instituições públicas para gerir situações de conflitos com o clube ou com a polícia, também merece destaque. Além disso, realizam um trabalho específico com aqueles que foram banidos, objetivando reintegrá-los aos grupos. Criada em 1993, A KOS (Centro de Coordenação dos Projetos de Torcidas) oferece consultoria aos projetos espalhados pela Alemanha, treina colaboradores, apoia o estabelecimento de novos Fanprojekte e fornece informações sobre o trabalho pedagógico a entidades do futebol, governo, polícia e meios de comunicação. Ademais, contribui para a difusão internacional desse programa.
Em março de 2014, a convite do Programa Setorial Esporte para o Desenvolvimento (Sport Für Entwicklung), da Agência Alemã de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento Sustentável (GIZ), por encargo do Ministério Federal de Cooperação Econômica e Desenvolvimento (BMZ), representantes do Ministério do Esporte, da Secretaria Nacional de Juventude, Secretarias Estaduais do Rio de Janeiro e de São Paulo, Secretarias Municipais de Fortaleza e do Rio de Janeiro, membros de torcidas organizadas da Cearamor (Ceará), Jovem Garra Tricolor, (Fortaleza), Leões da Torcida Uniformizada do Fortaleza, (Fortaleza), Dragões da Real, (São Paulo), Sangue Jovem (Santos), Federação das Torcidas Organizadas do Rio de Janeiro (FTORJ) e pesquisadores participaram de uma viagem de intercâmbio para conhecer os projetos desenvolvidos na Alemanha. A excursão percorreu 5 cidades (Dortmund, Dusseldorf, Mainz, Augsburg e Berlim). A programação envolveu visitas a estádios, sedes dos Fanprojekte e um colóquio na Universidade de Bielefeld.
Os membros das torcidas organizadas foram fortemente afetados pelas experiências interculturais ao longo de 14 dias. Não que o cenário alemão fosse considerado um mar de rosas, sabia-se que contradições e desafios eram constantes. E estas questões foram mencionadas nas conversas mantidas durante as inúmeras atividades da programação. Entretanto, o encaminhamento dado aos problemas, a compreensão sobre a positividade da vivência torcedora e as estratégias de organização e luta em torno de interesses comuns, ganharam relevo. No retorno ao Brasil, inspiradas pelas conquistas dos Fanprojekte, pela efervescência nos estádios e pela existência de uma “geral” em que torcedores podiam assistir aos jogos de pé, lideranças passaram a se posicionar a favor de ações baseadas em tal programa, divulgando essas ideias nas bases torcedoras e nas arenas públicas.
Nessa direção, o “Fórum de Torcidas: Fale conosco e não sobre nós”, organizado pela agência alemã GIZ, foi o pontapé inicial para as mobilizações.
No Palácio do Catete, Rio de Janeiro, no dia 3 de julho de 2014, durante a Copa do Mundo, participantes da viagem de intercâmbio e representantes de projetos de torcedores da Alemanha, se reencontraram. Nos jardins do Museu da República, torcidas armaram stands para expor suas atividades e materiais. O evento foi dedicado à cultura das torcidas e do próprio futebol dos dois países. E os debates se concentraram nas oportunidades de desenvolvimento de um trabalho sociopedagógico como parte de um conjunto de estratégias de prevenção da violência. Com este objetivo foram organizados dois painéis, um sobre “O valor de uma cultura de torcida viva, popular e positiva para o futebol e a sociedade – Experiências e lições do Intercâmbio de Torcidas entre Brasil e Alemanha”, e o outro acerca do “Potencial e limites de um trabalho sociopedagógico com clubes e torcedores – um diálogo intercultural”. O reencontro animou os presentes em virtude da continuidade das interlocuções e da possibilidade de cooperações futuras. As lideranças torcedoras lançaram, então, seu lema adotando um slogan do movimento ultra alemão “Fale conosco e não sobre nós”, que veio a se tornar o emblema da própria Anatorg. Lançada em dezembro de 2014, no III Seminário Nacional de Torcidas Organizadas, promovido pelo Ministério do Esporte em Belo Horizonte, a associação nacional representa um grande passo na história do associativismo torcedor no país. E, sem dúvida, o intercâmbio na Alemanha foi um dos fatores que estimulou a cooperação das torcidas na busca de alternativas para o enfrentamento dos confrontos violentos. Alternativas aliando repressão e prevenção, em uma abordagem que valorizasse a importância das torcidas no cenário futebolístico e o seu engajamento no espaço público. Isso significava a dura tarefa de abstrair rivalidades históricas que têm marcado o relacionamento das agremiações no Brasil, para superar dilemas e desafios que enfrentam e defender o seu estilo de torcer. O cenário atual é bastante complexo, especialmente com o fim do Ministério do Esporte, transformado em uma secretaria do Ministério da Cidadania, e a consequente desarticulação das ações anteriormente empreendidas. Contudo, a reconstrução desses processos, particularmente em momentos de crises, como o que atravessamos, talvez permita vislumbrar recomeços, no afã de que as trocas e aprendizagens ocorridas não se desvaneçam na poeira do tempo. Lembrar é um ato de resistência.
Para saber mais:
TEIXEIRA, Rosana da Câmara, LOPES, Felipe Tavares Paes (2018): “Reflexões sobre o “Projeto Torcedor” alemão: produzindo subsídios para o debate acerca da prevenção da violência no futebol brasileiro a partir de uma perspectiva sociopedagógica”. Revista de Antropologia. (São Paulo, online) | v. 61 n. 3: 130-161 | USP. http://www.revistas.usp.br/ra/article/view/152037
https://www.sport-for-development.com/imglib/downloads/bmz-giz2014-pt-atividades-da-cooperacao-alema-esporte-para-o-desenvolvimento-copa-do-mundo.pdf