Políticas de prevenção: a favor da inclusão do (saber) torcedor

Embora pouco conhecido do público em geral, um episódio, em 2004, foi de grande relevância para o avanço das estratégias de prevenção da violência no futebol: a formalização da Comissão Nacional de Prevenção da Violência e Segurança nos Espetáculos Esportivos (CONSEGUE), prevista na “Carta de Brasília”, que foi elaborada no ano anterior, no Seminário sobre Segurança nos Estádios, uma iniciativa dos ministérios do Esporte e da Justiça. A CONSEGUE surgiu como um espaço multidisciplinar, que tinha como finalidade apoiar e acompanhar a implantação da Política Nacional de Prevenção da Violência e Segurança nos Espetáculos Esportivos. Inicialmente, era constituída por dez integrantes, sendo cinco representantes da sociedade civil. No entanto, nenhum deles integrava uma torcida organizada (REIS, 2006). Para amenizar a  situação,  em  2012,  a advogada Silvia Carbonaro da Silva Chioroglo, da torcida Mancha Alviverde, do Palmeiras, foi designada para compor a comissão. Já no final do segundo mandato do governo Dilma Rousseff, criou-se, inclusive, a expectativa de que a CONSEGUE se expandisse com a criação de câmaras temáticas, que incluiriam lideranças de organizadas. 

Na coluna de hoje, argumento a favor dessa medida, ou seja, da inclusão de representantes de torcidas organizadas no processo de elaboração de políticas de prevenção da violência no futebol. Antes, contudo, gostaria apenas de salientar que esse tipo de inclusão já ocorreu em outros países, como a Colômbia, que integrou o ponto de vista dos barristas no Plan Decenal de Seguridad, Comodidad y Convivencia en el Fútbol (2014-2024). A defesa do meu ponto de vista sustenta-se em dois argumentos. Primeiro, seguindo John B. Thompson (2000), considero que, para que um acordo social seja justo e digno de apoio, todas as pessoas por ele diretamente afetadas devem, em princípio, ter o direito de participar. Assim, a exclusão das organizadas do referido processo constitui, antes de tudo, um problema ético. Como observa Pablo Alabarces (2012), para que possam exigir o respeito total às normas, as autoridades devem reconhecer os direitos democráticos dos(as) torcedores(as), incluindo o direito à crítica. 

Segundo, partindo das discussões de Boaventura de Sousa Santos (2007) sobre conhecimento, considero que a hierarquia dos saberes não deve ser determinada a priori, mas estabelecida de forma contextual. Isso não significa, obviamente, diminuir a importância da ciência moderna. Em vários casos, o conhecimento que ela nos oferece é, de fato, superior aos demais. Graças a ela, conseguimos, por exemplo, erguer edifícios altíssimos, mandar foguetes para o espaço ou produzir vacinas eficazes contra os mais diversos tipos de vírus. Há casos, no entanto, que tal conhecimento tem se mostrado inferior a outros ou, ao menos, insuficiente para oferecer soluções. No que diz respeito especificamente à produção de políticas de prevenção da violência no futebol, considero que uma aliança entre os saberes produzidos pelas pesquisas sobre o tema e os adquiridos pelos representantes das organizadas ao longo de suas trajetórias torcedoras pode ser muito bem-vinda. Afinal, devido à sua ampla experiência em ambientes futebolísticos hostis, esses representantes podem fornecer informações vitais para a sua transformação. Sendo assim, a não incorporação dessas informações nas referidas políticas constitui um desperdício, que pode, inclusive, minar sua eficácia. 

 

Referências 

ALABARCES, Pablo. Crónicas del aguante: fútbol, violencia y política. Buenos Aires: Capital Intelectual, 2012. 

REIS, Heloísa Helena Baldy dos. Futebol e Violência. Campinas: Armazem do Ipê, 2006.

SANTOS, Boaventura de Sousa. Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. Revista crítica de ciências sociais. n. 78, 2007, p. 3-46.

THOMPSON, John. B. Ideologia e cultura moderna: teoria social e crítica na era dos meios de comunicação de massa. 4 ed. Petrópolis: Vozes, 2000.