Por Rosana da Câmara
Inúmeros estudos de diferentes áreas das ciências humanas têm se debruçado sobre o fenômeno das “torcidas organizadas”. Essas análises reconstroem suas trajetórias históricas, identificam dinâmicas de funcionamento, modos se sociabilidade e refletem acerca das transformações sofridas ao longo do tempo. Assim, revelam as variadas facetas dessa modalidade de associativismo ligada ao futebol profissional, buscando desvencilhar-se das visões estigmatizantes e da condenação moral que têm prevalecido, trazendo novos olhares para a compreensão dessa prática sociocultural.
A interpretação dominante nos meios de comunicação tem afirmado o caráter emocionalmente instável e problemático dos integrantes desses agrupamentos.Classificados como “vândalos” e “desviantes”, em decorrência dos confrontos violentos que têm pautado a sua história, os torcedores organizados se veem aprisionados em uma identidade socialmente deteriorada. Contudo, tal representação disseminada pela mídia perde de vista, muitas vezes, que sob a denominação “torcida organizada” encontram-se grupos com características distintas, que têm se constituído em importantes espaços de socialização e pertencimento para inúmeros jovens. Neles, aprendem técnicas corporais, experimentam sentimentos, aceitam princípios coletivos de convivência e adotam certos padrões de comportamento. Nas arquibancadas produzem e transmitem saberes e símbolos para demonstrar ritualisticamente a paixão clube-torcida. Vendo, ouvindo e atuando nas torcidas inaugura-se um processo de descobertas, de engajamento físico e emocional, através do qual aquela identidade coletiva vai se desenhando e fortalecendo. A despeito de serem associações fluídas caracterizadas pela grande rotatividade de integrantes, alguns indivíduos se comprometem efetivamente no seu fazer cotidiano. Esse engajamento militante propicia a participação em relações sociais estimulando a criação de laços sociais, vínculos de amizade e de solidariedade, mas igualmente, relações de oposição e rivalidade. A condição de torcedor organizado supõe, pois, um conjunto de aprendizagens. Vejamos algumas dimensões pedagógicas (procedimentos, atividades e características) dessas aprendizagens. Pertencer a uma organizada implica assumir compromissos, acatando determinadas regras e formas de ação: ir aos jogos, viajar, protestar, apoiar o time a partir de condutas orientadas pelas lideranças. Não menos importante é a tarefa de produzir, cuidar e proteger o patrimônio material (uniformes, bonés, bandeiras, bandeirões, faixas e instrumentos). Ser aceito e reconhecido como membro significa “vestir a camisa”, fazer parte de uma tradição. Através desse envolvimento, a paixão pelo clube se converte pouco a pouco na idolatria da própria torcida. Tal sentimento é definido por muitosadeptos como dedicação, doação, sacrifício e, em alguns casos, disposição para a luta em defesa do coletivo. É esta disposição moral e física para a guerra que está na origem dos confrontos violentos que se acentuam especialmente a partir do final da década de 1980.
Traduzida na linguagem da paixão-fidelidade, a torcida aparece como um valor fundamental na constituição da subjetividade desses indivíduos, norteando ações e representações, funcionando como um fio condutor que organiza as outras esferas da vida social. Do ponto de vista antropológico, as emoções são expressões coletivas que seaprende a experimentar a partir do repertório cultural dos grupos de referência, das comunidades de sentimento nas quais se está inserido. A torcida organizada pode ser tida como uma dessas comunidades. Acompanhar o percurso social dessas agremiações nos seus itinerários pelas cidades oportuniza ainda uma mirada sobre o fenômeno das juventudes na sociedade contemporânea, suas práticas culturais, sociabilidades e bandeiras de lutas; sujeitossociais que têm uma história e agem sobre o mundo. Desse ponto de vista, as organizadas constituem um observatório privilegiado para conhecer diversos modos de viver a condição juvenil. E, muito embora, sejam espaços marcadamente masculinos, a presença e a participação feminina têm sido constantes e importantes na construção dessa experiência torcedora, desde a fundação das primeiras entidades. Entender como as relações de gênero se estabelecem no cotidiano das torcidas através das narrativas femininas é um trabalho fundamental para se avançar na compreensão das dimensões socializadoras destas coletividades.
Gostaria de argumentar, portanto, que as torcidas podem ser pensadas, também, como espaços educativos híbridos(informais e não formais) cujas dimensões pedagógicas se evidenciam no compartilhamento de experiências,tradições, memórias e a definição de ações coletivas para atuar nas arenas públicas. Seus componentes são expostos a múltiplas situações de aprendizagens que ocorrem em, pelo menos, três dimensões complementares. No âmbito estético-corporal, através das formas de se comportar, de se expressar (linguagem/cânticos), de se vestir (e se investir simbolicamente) nos estádios (performances/coreografias), nos percursos urbanos pelos pedaços da cidade e nas viagens pelo país.
No que diz respeito à paixão pelo clube/torcida, ela envolve uma educação sentimental, já que as emoções experimentadas e compartilhadas (alegria, tristeza, respeito, congraçamento, adrenalina, risco, medo, raiva, coragem) são fruto do convívio neste universo. Por fim, nas torcidas são vivenciadas relações de alteridadeobservadas na convivência entre pessoas de diferentes classes sociais, faixas etárias, etnias, gêneros, religiões e visões políticas.
Por outro lado, a adesão a uma torcida organizada coloca o torcedor militante em contato com um conjunto de procedimentos que caracteriza a vida associativa: reuniões, preparação para os jogos, organização desubgrupos, estratégias de mobilização, participação em eleições, caravanas, campanhas, projetos sociais, eventos, enfrentamento de situações de crise, conflitos, o posicionamento frente às exigências das autoridades, e denúncias nos meios de comunicação.
São muitos os desafios e dilemas vividos pelas agremiações na atualidade. Contudo, poderiam ser transformados em um ponto de partida para reflexões. Os encontros promovidos pela Anatorg durante a pandemia, através de lives no canal do You Tube, constituem uma iniciativa nessa direção. Esses diálogos poderiam ser intensificados de modo que os torcedores organizadosconstruam suas próprias narrativas a respeito da paixão clubística e sobre o papel das torcidas no espetáculo futebolístico. Mais uma vez a dimensão educativa está no centro do processo. Essas trocas cumpririam a funçãocultural de compartilhar aprendizagens e vivências com as futuras gerações de torcedores e aprofundar as interlocuções e entendimentos entre líderes e membros, de modo a amplificar suas vozes na defesa desse estilo de torcer e enfrentar conjuntamente os problemas.
Para saber mais:
Teixeira, Rosana da Câmara. Os perigos da paixão. Visitando jovens torcidas cariocas. SP: Annablume, 2004.
Teixeira, Rosana da Câmara. Aprendizagens e sociabilidades juvenis: a experiência das Torcidas Jovens Cariocas. http://desidades.ufrj.br/featured_topic/aprendizagens-e-sociabilidades-juvenis-a-experiencia-das-torcidas-jovens-cariocas/