Hooligans brasileiros: a vida de ‘torcedores violentos’, segundo eles mesmos
Conheci o professor, escritor e filósofo Vanderlei Lima em abril de 2012, por ocasião de um simpósio internacional, que envolveu pesquisadores franceses e brasileiros. O evento intitulava-se Hooliganismo e Copa de 2014 e ocorreu na cidade de Campinas, nas dependências da UNICAMP. Há cinco anos, portanto, acompanho o trabalho do autor do presente livro, a regularidade de suas publicações e a contribuição reflexiva de sua obra a respeito do comportamento socialmente antidesportivo instaurado, não sem certo paradoxo, no seio do futebol profissional espetacularizado.
Uma das qualidades que chama a atenção na produção do professor Vanderlei é a capacidade de articular a esfera local com a nacional e a internacional. Isto porque a leitura de seu livro Torcidas organizadas em Amparo: o caminho da paz é possível? (2011) já mostrava a sua acuidade em lidar com a microescala, averiguando os reflexos de um problema social que se generalizou nos anos 1990, no universo específico de um pequeno município do interior de São Paulo, a estância hidromineral de Amparo (SP).
Não se deve subestimar a importância dessa escala de observação. O surgimento e o enraizamento das Ciências Sociais no Brasil se deram nos anos 1940 e 1950, graças aos chamados “estudos de comunidade”. Sociólogos e antropólogos estrangeiros, do porte de Donald Pierson e Emílio Willems, desenvolveram pesquisas em cidades interioranas brasileiras, com a inspiração legada pela Escola de Chicago e pela microssociologia. Como se fossem laboratórios a céu aberto, as diminutas cidades do interior permitiam aos estudiosos um método etnográfico mais direto e eficaz, capaz de apreender e de inferir as formas elementares da sociabilidade urbana moderna.
Embora central, tal unidade de análise não se cinge a uma única localidade. Aqueles que seguem a coluna do autor no portal “Organizadas Brasil – torcendo pela paz nos estádios” podem testemunhar o alcance de suas questões em um âmbito escalar mais amplo. Desde 2011, textos de sua lavra vêm sendo postados, com um debate qualificado sobre questões legislativas e jurídicas no país como um todo.
Os artigos do colunista centram-se no exame do Estatuto de Defesa do Torcedor (EDT) e do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), com a mobilização de conhecimentos acumulados em sua formação de extensão na área de Direito e Punição pela PUC-Campinas. Junto à legislação e ao direito esportivo, Lima demonstra o seu acompanhamento continuado do complexo fenômeno do torcer no Brasil. Para tanto, reporta-se a incidentes, eventos e manifestos transcorridos em cidades como Curitiba, Brasília e Belém, entre outras capitais.
Não bastam os diagnósticos. O autor lidera também iniciativas em parceria com outros estudiosos e torcedores, a fim de criar instrumentos conciliadores, de propor medidas pacificadoras e de intervir de maneira mais efetiva no turbulento e caótico cenário da violência no futebol. É o caso da TOPPAZ, acrônimo de “Torcidas Organizadas Pela Paz”, projeto que existiu entre 2011 e 2014 e cuja finalidade foi a arbitragem de conflitos entre os fãs de futebol. Concebida por Vanderlei, a Toppaz se consubstancia, por sua vez, em outro livro de sua autoria: O protagonismo das torcidas organizadas na promoção da paz (2012).
Do âmbito nacional passa-se à esfera internacional. Esta é uma das virtudes do presente livro, dedicado a examinar a figura do chamado hooligan brasileiro, mediante articulação com sua historicidade e espacialidade no plano global. O personagem aqui em tela é enquadrado no tempo e no espaço, tendo por parâmetros os modelos de comportamento agressivo presentes na Europa e na América do Sul. Neste cenário continental, a Inglaterra, de um lado, e a Argentina, de outro, são faces da mesma moeda. Elas possibilitam o contraponto do hooliganismo como “fenômeno global”, segundo propunha Eric Dunning, com as particularidades do caso brasileiro.
A segunda parte do livro dedica-se, pois, à averiguação temporal e espacial da internacionalização das formas de torcer, em particular do tipo aqui examinado, chamado por convenção, mas não sem certa polêmica, de hooligan. À luz da história e da etimologia, o autor recupera a trajetória desse personagem e chega à contemporaneidade, por meio de uma atualização dos distúrbios ocorridos na última Euro-2016, quando russos, franceses e ingleses digladiaram nas ruas de importantes cidades da França.
Personagem real, mas também imaginário, capaz de disseminar o “pânico moral”, o hooligan ocupa a atenção de jornalistas, como o estadunidense Bill Buford e o argentino Gustavo Grabia, autores de reportagens de fôlego sobre o assunto. Tais obras são destacadas por Vanderlei, uma vez que, transformadas em livro, difundiram-se também no imaginário brasileiro. Ambos os livros foram não só projetados como potencializados junto ao grande público, com as traduções em português e as sucessivas reedições a que assistiram.
Nesse sentido, parece-me muito apropriada a estratégica de Vanderlei Lima ao optar, na primeira parte do livro, por uma apresentação dos hooligans brasileiros sob a forma de perfis. São perfilados, ao todo, dezesseis personagens. O autor acerta ao construir descrições de indivíduos de carne e osso, que escapam aos estereótipos fáceis e banais. Afasta-se das fórmulas jornalísticas estigmatizantes, mas também contorna a rígida abstração da Academia, por vezes muito generalista e incapaz de se aproximar da concretude e da realidade cotidiana deste segmento de torcedores.
Ao narrar encontros com “brigões”, ou seja, aqueles para os quais a briga tornou-se mais atraente que o jogo, o autor sistematiza relatos “de dentro” e “de perto”, conforme preconiza a antropologia. A apresentação de uma definição geral do hooliganismo – tripé ancorado em valores etnocêntricos, viris e agonísticos – vem de par com a descrição personalizada de cada uma das experiências vivenciadas por hooligans brasileiros, dentre os contatados e selecionados por Vanderlei.
Os relatos seguem uma estrutura regular, porém não invariante, a observar a ancoragem social, escolar e familiar dos depoentes. Ao mesmo tempo, preservam sua integridade, ao omitir o nome do entrevistado e do grupo a que pertence. Ao invés de um texto padronizado, as diferentes histórias de vida dão a conhecer as motivações de fundo dos torcedores, a sua viciante busca da excitação, muito sintomática da maneira pela qual a maioria dos relatos mostra as conexões do hooliganismo com a prática de artes marciais no Brasil.
Por fim, deve-se dizer que a linguagem aqui oferecida é vívida, ágil e dinâmica. Ela abre mão do verniz acadêmico e sabe captar o essencial da oralidade, ao reportar as gírias típicas do vocabulário e do repertório do torcedor organizado contemporâneo. Creio que seria possível, até mesmo, propor um glossário a partir deste universo vocabular, por meio da identificação dos usos e do sentido de expressões como: “botou pra dormir”, “trocação”, “disposição”, “esculacho”, “barrada”, “petecas”, “massagem”, “bonde”, “linha de frente”, “pista”, “respeito”, “alemão”, “troféu”, “dar ataque”, “treta”, “crocodilagem”, etc…
Pelas razões acima expostas, convido à leitura do livro do professor Vanderlei, publicado em 2017, pela editora Ixtlan, uma referência imprescindível a estudiosos, a jornalistas, a autoridades públicas e, em especial, a torcedores, tão bem retratados neste trabalho.