Histórias do associativismo torcedor no Brasil: o caso da ASTORJ
por Bernardo Buarque
Este texto traz alguns apontamentos da experiência da ASTORJ, entidade que reuniu torcidas organizadas de diferentes times do Rio de Janeiro nas décadas de 1980 e 1990, incluindo América, Bangu, Botafogo, Flamengo, Fluminense e Vasco da Gama. Em minha pesquisa de doutorado, levantei informações acerca da Astorj em fontes de jornais e em entrevistas com lideranças de torcidas à época que participaram do movimento.
Uma pergunta de contextualização inicial se impõe: como explicá-la historicamente?
Ao longo do decênio de 1970, as Torcidas Jovens cariocas consolidaram-se no cenário esportivo e ensejaram o surgimento de uma profusão de pequenas e médias agremiações, que revestiram o ato de torcer de significados associativos e culturais, recreativos e sociais até então inexistentes, a exemplo das caravanas de viagem, no acompanhamento dos times pelo Campeonato Brasileiro. No Rio, a culminância deste processo ocorreu no início da década seguinte, quando lideranças de tais grêmios tentam se agrupar em torno de interesses comuns e, entre 1981 e 1984, deflagram uma série de sucessivas greves, piquetes e boicotes pela redução do preço dos ingressos, entre outras reivindicações.
Tal postura resultaria na criação da ASTORJ, a Associação das Torcidas Organizadas do Rio de Janeiro, uma entidade com duplo objetivo: por um lado, a legitimação de uma força corporativa com influência na estrutura de poder dos esportes; por outro, a formalização do entrosamento entre os chefes de torcidas rivais, expressa no lema “Congregar, Congraçar, Unir”. No decurso da década de 1980, o projeto da ASTORJ prosperaria, mas já no final daquele decênio percebe-se a sua perda da representatividade, com a incapacidade de conter as crescentes rixas e a escalada das brigas entre os componentes das facções torcedoras.
Entretanto, sua desarticulação em fins dos anos 1980 e sua extinção no início da década seguinte não impedem de relatarmos aspectos interessantes protagonizados pela ASTORJ. Já entre 1981 e 1984, na esteira de seu surgimento, aconteceu uma inédita onda de greves promovidas pela recém-criada Associação, com a reivindicação da diminuição do preço dos ingressos nas arquibancadas. Os protestos abrangiam uma série de ações, que incluíam piquetes nas bilheterias para convencer os torcedores a não assistir aos jogos; frequência apenas no setor menos oneroso do estádio, a Geral, onde faziam protestos com passeatas, faixas e palavras de ordem.
A ASTORJ participaria ainda da promoção do Simpósio da Paz em 1985, idealizada por Niltinho (presidente da Torcida Jovem do Flamengo), e do I Congresso de Torcidas Organizadas dos Grandes Clubes, realizado em Porto Alegre em 1987, na esteira da criação do Clube dos 13 e da Copa União. Para esse encontro, um ônibus com torcedores de diferentes torcidas organizadas desloca-se ao Rio Grande do Sul.
Nesse contexto, além de uma articulação em nível nacional, o objetivo imediato das torcidas parecia ser a conquista do direito à voz e voto na Federação, bem como na SUDERJ – Superintendência de Desportos do Estado do Rio, gestora do Maracanã e vinculada à Secretaria Estadual de Esportes –, tendo em vista o conhecimento do dia a dia do futebol. A transitoriedade do dirigente nos cargos era contraposta à permanência do torcedor nas arquibancadas, razão pela qual havia sido criada a ASTORJ, entidade com uma clara postura reivindicatória que colocava os líderes de torcida como partícipes do evento esportivo.
A lista de reivindicações era divulgada pelo Jornal dos Sports, com exigências e cobranças alternadas ao oferecimento de contribuições, tais como a colaboração com a polícia nas campanhas de pacificação dos estádios e a reabilitação dos concursos de torcida, cuja última grande edição havia sido em 1973.
Latente e difusa durante certo tempo entre os torcedores, a ideia foi concretizada em 1981, por iniciativa de Armando Giesta, então líder da torcida do Fluminense, a Young-Flu. Ao todo, a associação contou com cerca de doze anos de existência. Seu primeiro presidente seria o próprio idealizador, que ficaria à sua frente entre 1981 e 1983. Em seguida, ela seria comandada por Wilson Amorim, da Bancica, uma torcida organizada do Bangu, indo de 1984 a 1986. Dentro da rotatividade prevista para as lideranças segundo a diversidade de torcidas de cada clube, o presidente seguinte foi Roberto Branco, da Raça Rubro-Negra, que presidiu a ASTORJ entre 1987 e 1989. Sem passar pelas lideranças de torcida de Vasco e Botafogo, que viam com reservas a entidade, a exemplo de César Amâncio e Russão, o comando retornou a Armando Giesta e durou até o início da década de 1990, quando a entidade foi dissolvida em meio à falta de representatividade e à incapacidade de sanar o principal estigma que acometia e pesava sobre as torcidas organizadas: as rixas, as brigas, os confrontos, numa palavra do senso-comum, a violência.
No caso das torcidas cariocas, o propósito e a justificativa imediata para a sua criação foram a reivindicação de um assento e do direito a voto no Conselho Arbitral da Federação de Futebol do Estado do Rio (a FERJ), então sob gestão de Otávio Pinto Guimarães, a fim de influenciar no processo decisório sobre uma polêmica questão e muito concreta na época: o preço dos ingressos.
Há mais de uma década no posto, desde quando o órgão ainda era conhecido como Federação Carioca de Futebol (FCF), o tradicional dirigente e futuro presidente da CBF na década de 1980, Otávio Pinto Guimarães, tinha como vice-presidente então o campista Eduardo Viana, mais tarde conhecido de forma pejorativa como Caixa D’Água, que apareceria no cenário esportivo carioca em 1979.
Este já se insinuava na sucessão do cargo e ganhava respaldo na medida em que era sacramentada em 1975 a aprovação do voto unitário em detrimento do voto plural dos clubes, com a alteração da correlação de forças no interior da entidade. A passagem do voto proporcional ao voto majoritário implicava em transformações relativas à configuração de poder na organização do Campeonato Carioca. Este passava a equiparar o peso dos interesses dos clubes de pequeno porte e dos clubes do interior do estado ao dos grandes clubes da capital, o que dava aos primeiros maioria no jogo político local.
A despeito do novo quadro, a luta da ASTORJ continuava a incidir na questão dos lucros auferidos pelos dirigentes dos grandes clubes à custa do dinheiro dos torcedores e na mobilização desencadeada pela oposição às propostas de aumento sucessivo das entradas, por meio de protestos à primeira vista espontâneos e de inéditas greves.
Salvo a participação no Conselho Arbitral e sua influência nas negociações sobre o valor dos ingressos, graças ao diálogo e às boas relações estabelecidas pelos torcedores com Otávio Pinto Guimarães, a pauta da ASTORJ abrangia ainda o controle sobre a distribuição das credenciais aos chefes de torcida, até então concedida diretamente a cada líder, para a entrada gratuita nos jogos, e a solicitação de uma sala para a entidade nas dependências do complexo do estádio do Maracanã – além das salas já existentes, restritas a uma por clube –, medidas cuja autorização competia por seu turno à SUDERJ e, portanto, ao governo do Estado. Enfim, tratava-se da tentativa de constituição de uma instância com espírito corporativo que reclamava e assegurava os direitos considerados legítimos pelos torcedores.
Outro elemento que contribuiu para a fundação da ASTORJ foi a efervescência proporcionada pela onda associativa das torcidas. Antes mesmo da criação da ASTORJ, em dezembro de 1976, o I Grande Encontro de Torcidas Organizadas do Flamengo, a reunir na quadra da escola de samba Unidos de Padre Miguel: a Flacinante, a Flaxiense, a Flanática, a Flasil, a Flacoad, a Flaquitino e a Flantástica.
Assim, à participação mais orgânica na vida decisória do clube e ao apoio deliberado a determinadas candidaturas, verificados em fins dos anos 1970, as torcidas assumiriam no início da década de 80 um caráter oposicionista mais explícito. Em especial nos anos de 1981 e 1982, quando a contraposição entre torcedores e diretores chegaria ao seu clímax, por meio de protestos e boicotes os mais variados, que poderiam ser equiparados à onda de agitações espontâneas ocorridas no biênio de 1967-1968.
Em respaldo aos acontecimentos, os meios de comunicação especializados voltariam a dar a essas manifestações um caráter dramático, em manchetes de primeira página e em reportagens especiais. Além do desempenho das equipes em campo, as revoltas tinham como força motriz uma controvertida e inédita discussão em torno do aumento do preço dos ingressos. A narração jornalística desse embate possibilitou a percepção de uma unidade entre as torcidas, ainda que essa se tenha se afigurado temporária e circunstancial, restrita à curta duração.
Tais elementos forneceram o substrato, entre outros fenômenos, para a emergência da ASTORJ, entidade que assumiu naquele momento uma postura por assim dizer sindical, com um sentido corporativo mais evidente, seja através da absorção da linguagem inspirada nos termos dos sindicatos, seja por meio da realização de greves propriamente ditas. O acompanhamento mais próximo da administração e da vida do clube, com a atenção crescente dispensada à atuação dos seus cartolas, onde tanto a oposição quanto a composição podem ser observadas, contribuiu para a concretização de tais atos.
Em nível nacional, o horizonte de abertura política, a revitalização das organizações sindicais e a crescente inflação influenciaram, ainda que de maneira indireta, a eclosão de acontecimentos dramáticos, estranhos à rotina e à normalidade do futebol, desenrolados nos estádios nesse período.
Estabelecia-se assim, de um lado, uma relação de oposição entre os torcedores e os dirigentes, e de outro, uma relação de composição entre os torcedores e os representantes do Estado na área esportiva. Com a queda dos preços as revoltas foram interrompidas, mas um de seus frutos foi materializado no segundo semestre de 1981: a instituição da ASTORJ. Ela permitiu uma aproximação ainda maior das torcidas com a SUDERJ ─ uma sala no Maracanãzinho foi oferecida à entidade ─ e com o próprio Jornal dos Sports, principal periódico esportivo da época na cidade.
Além da tradicional seção de cartas Bate-Bola, o Jornal dos Sports ofereceu à Astorj uma coluna especial na página três, intitulada A voz da galera, onde as torcidas podiam dar seus informes, como a convocação para suas reuniões semanais, às 19:00 hs, na sua sala no Maracanã, com entrada pelo Portão 18 do estádio. E após um ano de existência, a entidade já dizia contar com sessenta associações de torcedores dos clubes da cidade.
Tal fato contribuiu para que, no ano seguinte à onda de protestos, uma nova movimentação ocorresse nos meses de julho e agosto de 1982, com o respaldo e a representatividade da associação. Falava-se agora não em boicote, mas em Greve Geral, como na manchete de primeira página e na matéria correspondente do JS: “Torcidas decretam greve”.
As informações relatavam os resultados de uma reunião da Astorj, com 16 torcidas organizadas, onde, por quinze votos contra um, a entidade deliberava a greve contra o aumento dos ingressos. Segundo o presidente da ASTORJ, Armando Giesta, a decisão se dava em função da “inadmissível desonestidade e falta de palavra dos dirigentes”, que haviam acordado na última reunião do Conselho Arbitral a não-alteração do valor das entradas. A fiscalização das torcidas, sob a forma orgânica da Astorj, permitia-lhes um maior acompanhamento das posturas dos dirigentes, captando e questionando suas incoerências.
Mas no dia seguinte, a vinte e nove de julho, as dificuldades internas da Astorj também eram apresentadas pelo jornal com a chamada: “Galera dividida esvazia greve”. Nela, abordava-se a não-adesão de Russão do Botafogo e das facções do Vasco à medida deliberada pela ASTORJ. De modo que os clubes mantinham o preço antes estipulado e aguardavam a sua ratificação na nova reunião marcada para o Conselho Arbitral.
Enquanto isso, um editorial do Jornal dos Sports, “Ingresso caro, salário baixo”, deixava explícita a posição do periódico no apoio irrestrito ao torcedor em geral e à greve da Astorj, em particular. Não é possível saber em que medida esta matéria exerceu algum grau de influência, mas o fato é que, transcorridos poucos dias, o jornal anunciava o resultado da reunião do Conselho Arbitral. Presidida por Otávio Pinto Guimarães, com a participação da Astorj, novamente os torcedores venciam a queda de braço com os dirigentes, convencendo e sensibilizando o presidente da FERJ, tal como vinha estampado no JS: “Ingressos voltam a custar Cr$ 300,00”. Mais uma vez, atendidas as reivindicações através de uma inédita Greve Geral, a ASTORJ cessaria a revolta e voltaria a suas atividades cotidianas.
Mais afeitas ao instantâneo e ao furor momentâneo, porém não menos informadas por uma moral que encontrava paralelo em outros padrões associativos civis, as torcidas organizadas apenas insinuariam através da ASTORJ seus bosquejos associacionistas e sua tentativa de constituir uma entidade em moldes sindicais ou uma sociabilidade inspirada no modelo das escolas de samba, em época histórica propícia ao engajamento e favorável ao aparecimento de diversos movimentos sociais.
O enquadramento sociológico das torcidas em uma situação concreta e em uma moldura histórica particular, vivenciada na cidade do Rio de Janeiro e no país, bem como a apreensão e a representação midiática do fenômeno, foi um dos objetivos centrais deste texto para o Instagram da ANATORG.
A criação da ASTORJ não foi capaz de debelar os obstáculos e as resistências para a construção de um projeto inter-torcidas mais duradouro. À capacidade de produzir o entendimento e a concórdia, contraponteia-se uma abordagem que emerge com base em uma realidade paralela, simultânea, movida pela rivalidade e pelo confronto. O alvo a partir de agora passa a ser os valores que permeiam a moral interna dos grupos, em torno dos quais o reconhecimento do adversário ─ entendido na condição de torcedor do clube oponente ou de torcida organizada diferente ─ é preterido por sua contrapartida hostil, desqualificadora e desumanizadora do outro, o inimigo.
Se as brigas preponderaram e desarticularam o projeto construtivo da ASTORJ, não deixa de ser importante contar a história dessa experiência associativa que existiu no Rio de Janeiro dos anos 1980, para que possa servir de exemplo e de inspiração à própria ANATORG, com os desafios que esta tem à sua frente na presente década de 2020.