Histórias do Associativismo Torcedor no Brasil (III): ATOESP
por Vitor Canale e Bernardo Buarque
A última crônica dessa série apresentou o contexto das torcidas organizadas paulistas durante a década de 1970, quando do surgimento da ATOESP, articuladas por lideranças como Flávio La Selva (Gaviões da Fiel), Cosmo Damião (Torcida Jovem do Santos) e Hélio Silva (TUSP), entre outros. Mostrou-se como, mesmo a despeito dos confrontos até certo ponto usuais entre os torcedores em circunstâncias de jogos, seja no interior ou fora dos estádios, seja nas caravanas inter-municipais, a capacidade de diálogo de seus líderes permitiu a canalização de uma instância representativa, capaz de estabelecer pontes e pontos em comum de reivindicação e a demandar das autoridades suas pautas, bem como a fazer as vezes de porta vozes dos interesses do conjunto dos torcedores nos estádios perante a imprensa.
Este texto, em continuidade, aborda a temática no decênio seguinte, os anos 1980, quando parte da mobilização da ATOESP permanece acesa e ativa, mas, no decorrer do tempo, e já logo de início, sua articulação vai sendo minada pelas rixas cada vez mais intensas entre torcidas. Salienta-se a importância do surgimento da torcida palmeirense Mancha Verde, em 1983, que altera o jogo das rivalidades entre as torcidas organizadas, até então concentradas entre Gaviões e Jovem do Santos. Doravante, passa-se a operar entre a referida agremiação corinthiana e o novo agrupamento palmeirense.
De maneira simbólica, estabelece-se o ano de 1988 como marco simbólico do fim de uma era associativa de entendimento e pacto dialogado intergrupos, com o falecimento de dois ícones desse universo, representativos de duas facetas diversas, mas coexistentes, do mundo das torcidas organizadas. Trata-se de Flávio La Selva, fundador dos Gaviões em 1969, que falece por razões de saúde naquele final dos anos 1980, reconhecido por seu caráter conciliador; e Cléo, fundador da Mancha em 1983, conhecido pelo ímpeto contendor e pela disposição para ocupar a linha de frente nas brigas com os rivais e que acaba por ser vitimado por vingança com tiros à queima roupa, em emboscada premeditada de rivais, sendo a autoria do crime nunca elucidada pela polícia civil.
Está-se assim em face da desconstrução de um ideal, com o fim de uma era de tentativas de conciliação e com o início de outro momento, em que a rivalidade passa a ser resolvida em sucessivos revides, em espiral cada vez mais grave e perigosa, o que inclui a possibilidade de incidentes fatais, como irá se agravar na década posterior, anos 1990.
Procuraremos a seguir sintetizar as linhas gerais desse fenômeno, com base na tese de doutorado de Vitor, orientada por Bernardo e defendida em 2020 no Programa de Pós-Graduação em História Política e Bens Culturais da Fundação Getúlio Vargas (FGV CPDOC).
Como dito acima, convém começar salientando que o gradual esgarçamento das relações entre as principais torcidas organizadas na cidade de São Paulo teve seu momento sintomático em dezembro de 1983, quando as entidades de torcedores declararam o fim do pacto de não agressão entre os grêmios. Tal situação, conforme as declarações dos mandatários da Torcida Uniformizada do São Paulo, da Torcida Jovem do Santos, dos Gaviões da Fiel e da Torcida Uniformizada do Palmeiras devia-se aos novos contingentes de torcedores que chegavam às entidades com uma percepção equivocada da causa e dos valores das torcidas. Ainda segundo os dirigentes dos grêmios mais tradicionais de São Paulo, esses novos adeptos seriam os responsáveis pela rivalidade belicosa e pelo ambiente revanchista que se instalara no futebol da cidade.
Internamente, cada uma das principais torcidas organizadas da cidade teve de lidar com o progressivo aumento de adeptos, que trazia consigo o desafio de difundir os valores e ensinamentos da instituição a um número maior de adeptos. O tradicional circuito de trocas de experiências entre os torcedores com mais tempo de grêmio e os neófitos ficava afetado pelo crescimento das torcidas organizadas.
A expansão dos grêmios traria ainda mais relevo à segmentação de interesses e representações dentro de cada torcida organizada. A formação de pequenos subgrupos, baseados em diferentes concepções, em diversos vínculos territoriais e em pertencimentos sociais díspares, longe de ser uma anormalidade, era parte da lógica das torcidas desde seu nascedouro. A criação de laços mais íntimos entre os membros por conta da proveniência de um mesmo bairro ou região da cidade, por compartilharem do mesmo transporte público para ir à sede dos grêmios ou ao estádio e uma forma de pensar semelhante sobre os problemas de cada grêmio acentuaram a diversidade dos valores em disputa nos primeiros anos da década de 1980.
O uso da violência, a embriaguez, o uso de tóxicos e outras atitudes que rompiam com certos códigos éticos das torcidas organizadas eram punidos com a expulsão dos torcedores. Contudo, a exclusão do quadro associativo acabava por ter um efeito contrário ao desejado pelas lideranças dos movimentos de torcedores. Os punidos amealhavam capitais sociais, baseados numa conduta marginal, que atrairia outros torcedores, majoritariamente jovens, para a formação de pequenos coletivos que encampavam valores diferentes daqueles apregoados nos grandes grêmios de torcedores.
A inexperiência, a disposição para o enfrentamento físico e um equivocado sentido de liderança seriam os principais traços desses novos grupos, nas palavras de Magrão, dirigente dos Gaviões da Fiel. Para Cosme Freitas, da Torcida Jovem do Santos, o motivo para o crescimento desses grupos de jovens era o vácuo de representação surgido com o gradual afastamento dos fundadores das torcidas. Para ambos os torcedores, esse desvirtuamento da proposta existencial das torcidas organizadas era parte dessa ruína moral.
Segundo Hélio Silva, longevo presidente da Torcida Uniformizada do São Paulo, as atitudes desses grupos de adeptos, como a invasão à sala de seu grêmio, no Morumbi, traziam consigo a necessidade de gerenciar o descontentamento e o desejo de revanche de seus adeptos.
Para alguns torcedores essas contendas atendiam a outros princípios para além da contravenção, representando a luta por um espaço de influência dentro do movimento de torcedores e na vida política dos seus clubes. Era ainda a busca por um sentido de “respeito” que também se encontrava em disputa entre as novas e as velhas gerações das torcidas. A relação entre a Mancha Verde, entidade criada em janeiro 1983, e a Tup, até aquele momento a maior torcida organizada do Palmeiras, demonstra a diversidade de visões, interesses e estratégias que animavam essa disputa geracional.
O sintoma Mancha Verde
A torcida organizada Mancha Verde foi criada em 11 de janeiro de 1983, herdando o nome de outra torcida palmeirense surgida no final da década anterior e de vida efêmera. Fruto da união de três pequenas entidades, a Império Verde, a Inferno Verde e o Grêmio Alviverde, a nova torcida nascia sob o desígnio de resgatar o “respeito” perdido.
Segundo Paulo Serdan, fundador e presidente de honra da Mancha Verde, o surgimento de uma nova torcida era resultado de humilhações sofridas pela torcida do Palmeiras diante da violência perpetrada pelos Gaviões da Fiel e pela Torcida Jovem do Santos.
A busca pelo “respeito”, para essa vanguarda jovem de torcedores, versava sobre todo palmeirense ter o direito de vestir a camisa de seu clube e circular pela cidade, sem medo de intimidações por parte dos adversários. Significava ainda o direito de se fazer representar nas arquibancadas dos clássicos e dos jogos da seleção brasileira, espaço compartilhado entre torcidas de diferentes clubes, onde os palmeirenses eram costumeiramente hostilizados.
A breve presidência do primeiro mandatário da Mancha Verde, Dorival Menezes, era sintomática dos princípios em conflito entre os alviverdes. A atitude de Dorival Menezes era passível de diversas interpretações; porém, para os setores influentes da Mancha Verde, a debandada dos ônibus era ao mesmo tempo fugir de um adversário e abandonar colegas de torcida à própria sorte, ambas opções inadmissíveis e que culminaram com a saída de Menezes.
Os enfrentamentos eram vistos como o meio privilegiado para angariar “respeito” e ser temido por grupos adversários era um status buscado pelos jovens alviverdes, não só na Mancha Verde, como também dentro da Tup.
Marcelo Lima, contemporâneo da criação da Mancha Verde e integrante da Torcida Uniformizada do Palmeiras, em entrevista cedida em 2015 ao projeto Territórios do Torcer, opinava que os enfrentamentos eram o imperativo de uma geração de palmeirenses que não vislumbravam mais a solução através do diálogo; porém, delimitava que existia uma ética interna de relações entre as torcidas organizadas.
O uso de armas de fogo ou armas brancas era uma excepcionalidade, pois o desejo era apenas subjugar o adversário e não o matar. Nos primeiros anos da Tup, fundada na década de 1970, a concepção de virilidade apresentava-se sob o signo do respeito mútuo nas relações internas à torcida e com seus adversários. A figura, os ideais e os discursos de Wanderley Matheus Rodak eram sintomáticos do desejo de uma atuação torcedora em que os valores morais estivessem acima da rivalidade clubística. Exemplo dessa importância da civilidade era a premiação anual do melhor jogador paulista, não pertencente ao Palmeiras, nas festas de fim de ano da Tup.
“A mais vibrante” tinha em sua civilidade e na performance torcedora da arquibancada seus norteadores na década de 1970; porém, os jovens que acorriam à torcida organizada trouxeram consigo novas formas de pensar. Assim, velhos e novos valores se entrelaçavam na experiência dos líderes dos anos 1980, como Marcelo Lima, que viria a ser presidente da Tup.
Distopia e ódio em 1988
A união esporádica entre os torcedores, visando constituir uma resistência às proibições e contra o reajuste de ingressos, não foi capaz de refrear os constantes episódios de violência e o aumento da belicosidade dos encontros entre torcedores. A morte de Flávio La Selva, dos Gaviões da Fiel, em março de 1988, parecia sentenciar o fim de uma era nas torcidas organizadas, que teria na vida e na morte de Cleofas Sóstenes, da Mancha Verde, seu novo emblema.
Flávio La Selva foi uma figura de destaque em diversos ambientes da capital paulista. Seu papel de fundador e referência moral dentro dos Gaviões da Fiel se somava à grande influência que amealhara no Corinthians, garantindo-lhe assento no conselho deliberativo do clube e cargos de gestão em várias oportunidades. Foi ainda um dos fundadores e presidente da Atoesp. Para além do futebol, o corintiano era um católico praticante, com longos serviços prestados à Igreja na capital desde sua juventude; foi dirigente da União das Escolas de Samba de São Paulo, a Uesp; e participou do GDC, Grupo de Defesa da Cidade, entidade suprapartidária criada para discutir o futuro de São Paulo e fiscalizar obras em andamento na década de 1980.
A atuação política e social de Flávio La Selva e a forma como influenciou o destino dos Gaviões da Fiel sedimentaram uma alcunha política ao movimento de torcidas organizadas em geral. O torcedor foi referência não apenas entre os corintianos como para seus adversários, algo perceptível nas homenagens que se seguiram ao seu falecimento, em 21 de março de 1988. Segundo os biógrafos de Flávio La Selva, sua irmã Wanda La Selva e o advogado Durval Goyos Júnior, o enterro, no cemitério do Araçá, teria levado milhares de pessoas e contou com representantes das escolas em que o corintiano lecionou, representantes da Igreja Católica, como seu amigo pessoal Dom Paulo Evaristo Arns, e membros dos Gaviões da Fiel.
A TUP divulgou uma nota sobre o corintiano em que lamentava o “falecimento de um grande esportista, Flávio La Selva, ligado à torcida Gaviões da Fiel, um amigo pessoal da Tup, além de um grande pacificador respeitado por todos”. A Torcida Tricolor Independente também mostrou seu apreço ao corintiano por meio de nota oficial: “quando da existência da Atoesp, Flávio La Selva foi o maior incentivador da paz nos estádios, tendo sido o principal mediador entre a Gaviões da Fiel, a Independente e a Jovem do Santos, tendo logrado sucesso na pacificação e colecionado amigos”.
A mensagem da Torcida Jovem do Santos, de seu compadre Cosme Freitas, ressaltava que “Flávio deixou uma filosofia de vida tão linda que, se uma terça parte das pessoas pensasse como ele, o mundo seria bem diferente, mais bonito e sem violência, pois sabemos o quanto ele lutou para erradicar as brigas nos estádios”.
Seu papel militante, suas preocupações sociais e seu caráter pacifista ajudaram a moldar a atuação dos movimentos das torcidas organizadas em sua primeira década, estabelecendo relações de apoio mútuo entre os grêmios da cidade; apoiando a diversidade de atuação de cada torcida, como no carnaval, em projetos sociais ou práticas esportivas; estabelecendo um panorama de atuação na política interna de cada clube e na política institucional do país.
Desde 1976, com a criação da Atoesp, até o fim de sua vida, a luta de La Selva pela pacificação das torcidas fez parte de um conjunto de preocupações que moldou os valores morais da primeira geração das torcidas organizadas. Seu espectro moral vive ainda na “ideologia” das torcidas organizadas e se faz presente em muitas das atuações humanistas e progressistas dessas entidades.
No entanto, o movimento de torcidas organizadas mudava ao longo da década e 1988 era o ano em que as desavenças entre a Mancha Verde e a Tricolor Independente assumiam seu momento mais belicoso. Em junho, o presidente da FPF, Eduardo José Farah, fazia um convite que ia ao encontro do desejo de maior participação das torcidas. Na reunião entre o mandatário e os representantes de dezenove torcidas organizadas foi apresentada a proposta para a criação do cargo de fiscal da torcida. Segundo Farah, os grêmios de cada clube deveriam eleger cinco representantes que reuniriam as críticas e sugestões dos torcedores nas arquibancadas para repassá-las à Federação Paulista de Futebol. Com credenciais para os diferentes pontos do estádio, a ideia era que os representantes pudessem ouvir a maior variedade de adeptos possível.
A pauta da reunião teve de ficar em segundo plano em razão dos acontecimentos posteriores. Ao término do encontro na sede da Federação, os representantes da Mancha Verde foram atacados por um grupo da Torcida Tricolor Independente, que atiraram vários rojões e fugiram em um carro. Adamastor, presidente da Independente, foi esquecido por seu grupo e precisou fugir dos manchistas e da Polícia Militar. O torcedor teria se escondido numa drogaria das cercanias e saiu de lá diretamente para o camburão policial. Para Moacir Bianchi, da Mancha Verde, e Hélio Silva, da Tusp, a atitude covarde deslegitimava tudo que fora acordado minutos antes e representava um retrocesso entre as torcidas.
Uma semana depois, membros da Torcida Tricolor Independente e da Mancha Verde se enfrentavam no programa de perguntas e respostas Show de Bola, da TV Gazeta. Com o estúdio lotado, os torcedores de ambos os grêmios se concentraram nas calçadas da Avenida Paulista, onde começaram uma longa briga.
Após uma hora de hostilidades, na qual o trânsito da avenida chegou a ser fechado, a Polícia Militar atuou e deteve 27 torcedores, sendo 12 deles menores de idade. Foram encontrados entre os são-paulinos onze coquetéis molotov, dois litros de álcool, pedaços de madeiras com pregos, canos de ferro, bambus e rojões. O conflito não contou com feridos graves e nenhuma bomba foi lançada.
Segundo Flávio, diretor financeiro da Independente, as bombas eram uma proteção em razão da rixa que alimentavam contra a Mancha Verde desde 1983. A rivalidade entre os grêmios crescera por conta da invasão da Mancha Verde à sede dos são-paulinos no ano anterior, bem como da reunião convocado pelos palmeirenses dois meses depois pedindo um resgate para a devolução de instrumentos de percussão, faixas e bandeiras. O encontro teria acabado em tiroteio. Vicentini confidenciava que “a Mancha Verde chegou a propor uma guerra organizada, uma espécie de guerrilha urbana. Seria proibido matar e permitido apenas bater e aleijar”. Torcedores da Independente alegavam que os atritos com os integrantes da Mancha Verde atingiram tamanha virulência que muitos são-paulinos foram ameaçados de morte e até perseguidos em suas residências.
Em outubro do mesmo ano, a escalada da violência deixava marcas na história da Mancha Verde. Existem diversas versões sobre a execução do torcedor Cleofas Sóstenes Dantas da Silva, o guerreiro Cléo. O torcedor, que fora presidente e símbolo da torcida, era considerado a representação máxima dos valores manchistas. Conhecido no universo das torcidas organizadas por palmeirenses e pelos adversários, Cléo era um apaixonado pelo clube e exímio “brigador”, sempre pronto a restaurar e proteger a honra de sua instituição.
O sepultamento no cemitério do Araçá, em jazigo pertencente a S.E. Palmeiras, foi acompanhado pelos jogadores Lino, Zetti, Ivan e Marcos, causando comoção na torcida e no clube. Cléo era o presidente em exercício da Mancha Verde e foi substituído pelo colega de muitos anos, Moacir Bianchi, o Moa, que também morreria executado a tiros na capital paulista em 2017, em razão de desavenças internas na torcida que o fundador buscava naquele momento apaziguar.
O delegado da 23ª Delegacia de São Paulo, José Heliodoro dos Santos, tinha como principal hipótese para o homicídio de Cléo rixas relacionadas às torcidas organizadas. Uma carta assinada por um autor não revelado explicava as motivações do crime e a identidade dos suspeitos, que estariam ligados aos Gaviões da Fiel.
A diretoria do grêmio corintiano buscava desvincular a entidade do crime e lamentou a morte de Cléo. Moacir Bianchi, líder da Mancha Verde, afirmou que houvera um desentendimento entre torcedores palmeirenses e corintianos no último clássico, mas nada além do costumeiro.
O delegado convocou os corintianos Antônio Mezher, Carlos Tadeu Miranda e Carlos Garofallo para prestar depoimento e afirmou que nenhum deles estava implicado no homicídio, o que fazia a polícia descartar a pista da carta e voltar ao ponto inicial das investigações.
O jogador Denys, do Palmeiras, temia que o ocorrido se transformasse em uma bola de neve com o desejo de vingança dos palmeirenses. José Burti, vice-presidente do conselho da Tup, acreditava que fosse um crime ligado ao lado pessoal do torcedor, pois a rivalidade entre torcidas era antiga e nunca uma atitude dessas tinha sido tomada.
O jogo entre Palmeiras e Cruzeiro seria o primeiro após o falecimento de Cléo e as homenagens começaram antes mesmo da partida, com faixas, foguetório e balões, parte da campanha iniciada pelo 2º Batalhão de Choque da PM para prevenção da violência no futebol.
No entanto, o clima de paz foi rompido antes do início da partida. Segundo os palmeirenses, membros da torcida visitante não teriam respeitado o minuto de silêncio para o presidente manchista – ensejo para quinze minutos de uma intensa briga nas arquibancadas do Parque Antártica. Segundo o tenente Vanderlei Coelho, o objetivo dos palmeirenses era derrubar a grade que separava as duas torcidas. O clima de hostilidade passou às cadeiras cativas e numeradas, onde houve trocas de socos e pontapés. Controlada a primeira onda da briga, os torcedores palmeirenses se insurgiram contra a Polícia Militar, que fez uso de cassetetes e até de armas de fogo para retomar o controle do estádio.
Após o jogo, com vitória alviverde por 2 a 0, vários ônibus de cruzeirenses foram apedrejados. Os mineiros foram conduzidos ao 2º Batalhão da PM, que alugou um ônibus de linha que os levaria até a Rodovia Fernão Dias, como forma de despistar possíveis perseguições dos palmeirenses. Dentre os torcedores cruzeirenses, havia um palmeirense infiltrado, responsável por passar a localização dos adversários.
No dia 24 outubro foi celebrada no ginásio do Palmeiras a missa de sétimo de dia de Cléo. O Estado de S. Paulo ressaltava que muitos torcedores manchistas não queriam esperar o fim das investigações policiais e o temor era de que mais situações violentas acontecessem. Segundo o jornal, logo após o homicídio, “alguns chefes de torcidas com medo de novos assassinatos tentaram reunir seus presidentes para um pacto de paz, mas não conseguiram”. Dirigentes dos Gaviões da Fiel, torcida tida naquela fase de investigação como possível suspeita, afirmavam não estarem saindo de casa com medo de retaliações.
O técnico palmeirense, Ênio Andrade, manifestava publicamente sua preocupação com o primeiro encontro entre Palmeiras e Corinthians após a morte de Cléo. O jogo de 16 de abril de 1989, quase seis meses após o homicídio, gerava receio quanto a possíveis confrontos entre Mancha Verde e Gaviões da Fiel. Andrade pedia aos jovens que se lembrassem de suas famílias ao saírem de casa e que fizessem de tudo para retornar ao lar em segurança. O sistema de policiamento para a partida previa rotas diferentes para as torcidas chegarem ao Morumbi, de modo que não houvesse possibilidade de encontros. O mesmo expediente seria adotado na saída das torcidas.
O fardo de sustentar o “respeito” e a “honra” dentro de uma torcida organizada e na relação com seus rivais atendeu a diversos sentidos dentro da experiência dos torcedores. A recorrência de termos como abnegação, vontade e luta denotam um universo de tensões e valores morais que regem a vida das organizações e de seus adeptos.
Essa carga que repousava sob os ombros da Mancha Verde não fora criada por ela, mas herdada e desenvolvida a partir das relações da década de 1970, que tinham os torcedores palmeirenses como vítima na maioria das oportunidades. A perspectiva de revanche denota que o ciclo de enfrentamentos viera muito antes da ruptura do pacto entre torcidas de 1983, podendo ser demonstrada pelas recorrentes hostilidades nos pontos da CMTC, no entorno e dentro dos estádios.
A partir dessa consideração cabe o reconhecimento de que a Mancha Verde, tratada como um problema social pela polícia e por diversos setores da mídia, representava parte dos sintomas de um processo em ascensão. Na experiência desses novos líderes de torcida na década de 1980, a briga estava enredada numa complexa teia de sentidos, que pressupunham a autoproteção e a criação de status para o torcedor e seu grupo. Para muitos palmeirenses, brigava-se pelo direito de demonstrar afeição ao seu clube e portar os seus símbolos, mas também para submeter os adversários numa lógica que tinha a violência como principal valor.
Tal contradição entre a defesa e o ataque, entre ferir e ser ferido, estava representada na morte de Cléo. O assassinato sem elucidação policial e suas marcas na comunidade palmeirense reforçam a sensação de que as obrigações impostas pela virilidade são, antes de tudo, um pesado fardo. A vida fugidia de Cléo, seus feitos e sua trajetória, ao mesmo tempo que constituíam expressão da honra, deixaram uma carga de revolta e vingança que traria muitos outros enfrentamentos na década de 1990.
O ambiente de rivalidade belicosa em São Paulo restringiu os canais de diálogo e reivindicação conjunta das torcidas organizadas. O gradual afastamento entre as lideranças de diferentes grêmios mostrava que os sentidos de uma experiência em comum, da identidade de pertencimento a uma torcida organizada, perdera espaço nas representações em prol da lógica da imposição hierárquica pela força física e do princípio de aniquilação do rival em situações extremas.