Histórias do Associativismo Torcedor (II): o caso da ATOESP

por Vitor Canale e Bernardo Buarque

O presente artigo visa apresentar apontamentos sobre os primeiros anos de existência da ATOESP, a Associação das Torcidas Organizadas do Estado de São Paulo. A entidade, institucionalizada em 1976, congregou torcidas organizadas de Corinthians, Guarani, Palmeiras, Ponte Preta, Portuguesa, Santos e São Paulo. A iniciativa pioneira de reunir sob uma mesma entidade torcidas adversárias foi a temática central da minha pesquisa de doutorado que reuniu fontes jornalísticas, documentação de torcidas e da ATOESP, além de depoimentos de torcedores.

O ineditismo representado pela associação traz consigo a seguinte questão: Quais eram os desejos e interesses que alimentaram essa união e quais as estratégias que essa entidade adotou para atingir seus objetivos?

Para responder esses questionamentos se faz necessário regressar até o surgimento das primeiras torcidas organizadas do estado de São Paulo, a partir do final da década de 1960. Esses grupos restauraram experiências coletivas que não eram vistas em São Paulo desde o ocaso das torcidas uniformizadas, no início da década de 1960. Formadas majoritariamente por jovens, as torcidas organizadas inauguraram novas formas de atuação nas arquibancadas, na política dos clubes e se tornaram parte indissociável do ambiente futebolístico.

Esses novos grêmios de torcedores tinham diversos pontos de convergência afinal compartilhavam os dessabores do continuísmo político, que era frequentes nos clubes paulistas, usufruíam do mesmo policiamento e sistema de transporte, frequentavam os mesmos estádios e estavam sujeitos a uma mesma legislação que proibia fogos de artifícios, mastros de bandeiras e instrumentos de percussão desde 1975. 

Se a rivalidade separava os torcedores da cidade, as lutas e reivindicações por mudanças os uniam. A duradoura aliança entre Flávio La Selva, fundador dos Gaviões da Fiel; Cosmo Freitas, fundador da Torcida Jovem do Santos; e Hélio Silva, presidente da Torcida Uniformizada do São Paulo, fortaleceu uma agenda de interesses comuns e foi um dos estímulos para a institucionalização da ATOESP.

O contato frequente entre as lideranças – que, segundo Hélio Silva, começara por volta de 1972, com encontros semanais em bares da cidade para tomar cerveja e discutir os problemas em comum das torcidas – estreitou até os laços de compadrio entre Cosmo Freitas e Flávio La Selva.

A realização de um campeonato de futebol entre torcidas organizadas da capital paulista, no Ibirapuera, era mostra de como esse movimento originado nas lideranças começava a se expandir para as instituições como um todo. O evento de janeiro de 1975 precedia em mais de um ano a institucionalização da ATOESP, mas já mostrava um terreno fértil de relações.

 

A criação de uma associação de torcedores era vista como um acréscimo de credibilidade para o encaminhamento de demandas e sugestões a outras entidades do futebol, principalmente a Secretaria de Segurança Pública do Estado e a Federação Paulista de Futebol. Era também a possibilidade de um discurso unificado junto à mídia em questões que interessavam a todos os torcedores. O desejo dos fundadores da ATOESP era criar um espaço para o estabelecimento de regras comuns a todas as torcidas, dividir harmonicamente os espaços das arquibancadas nos clássicos do Morumbi e do Pacaembu e criar estratégias para diminuir os crescentes enfrentamentos entre torcedores, organizados ou não. 

A institucionalização da entidade ocorreu em 17 de fevereiro de 1976 e em seu primeiro ano a ATOESP contava com os Gaviões da Fiel e a Povão Torcida Unida, representantes do Corinthians; a Torcida Uniformizada e a Torcida Acadêmica do Palmeiras; as torcidas Leões da Fabulosa e Corações Unidos da Portuguesa de Desportos; a Torcida Uniformizada do São Paulo; a Torcida Jovem do Santos; e as campineiras Torcida Jovem da Ponte Preta e Guerreiros da Tribo – Força Independente do Guarani. 

A sede dos Gaviões da Fiel, localizada à época no segundo andar de um prédio situado na Rua Santa Ifigênia, número 176, foi o endereço escolhido para a hospedar a associação, mas tinha por função apenas receber as reuniões entre os dirigentes das torcidas e correspondências. Flávio La Selva, um dos principais incentivadores da criação da ATOESP, foi escolhido como seu primeiro presidente, mas ao longo da primeira fase da entidade se revezaria no cargo com Hélio Silva e Cosmo Freitas.

Uma das preocupações centrais da ATOESP eram os episódios de violência envolvendo torcedores tanto na capital paulista como no interior do estado. A primeira metade da década de 1970 contou com esparsos episódios de violência, com o evento mais significativo ocorrendo em 1973, na partida entre Palmeiras e Corinthians no Parque Antártica. Porém, o gradual aumento de enfrentamento entre torcedores preocupava as lideranças das torcidas organizadas.

Nesse mesmo sentido, os acontecimentos que envolviam deficiências na atuação policial e abuso de força e/ou autoridade também geravam temor. A análise da apreciação dos torcedores sobre o trabalho da polícia, aferida por uma pesquisa da Folha de S.Paulo, do dia 3 de agosto de 1975, refletia a desconfiança de parte dos adeptos. Dos 1.342 torcedores ouvidos em 1975, apenas 21,66% classificavam o policiamento como bom; para 17,43% este era regular; e a maioria, 60,91%, via a atuação policial nos estádios como violenta.

A situação era considerada mais grave fora da capital paulistana, onde a falta de um padrão para a atuação da Polícia Militar nos estádios fazia com que os torcedores que rumavam ao interior tivessem de lidar com diferentes procedimentos de segurança e, muitas vezes, com um sentimento de orgulho local, que unia as torcidas e a polícia do interior contra os forasteiros.

Em outras situações, os estádios eram incapazes de atender os públicos almejados pelo desejo de lucro dos clubes e da Federação Paulista de Futebol e compunham o retrato das agruras do futebol paulista e como elas afetavam os torcedores.

Apesar das críticas do público em geral, poucas mudanças partiam da Federação Paulista de Futebol e da Secretaria de Segurança Pública. O carnaval de blocos de São Paulo foi um dos meios encontrados pela ATOESP para criar um ambiente de convívio agradável entre os adversários e diminuir as hostilidades entre torcedores. 

O ano de 1976 marcou o ingresso dos Gaviões da Fiel, primeira torcida organizada no carnaval de blocos. No desfile de 1978 a novidade era a participação da Torcida Uniformizada do São Paulo e no Carnaval seguinte, somava-se o Bloco do Peixão, organizado pela Associação das Torcidas Organizadas do Santos, ATOS.

Para Hélio Silva, da TUSP, o Carnaval era uma forma de mostrar que o são-paulino também era do povo e de popularizar o clube do Morumbi. A ideia de ingressar no Carnaval surgiu da vontade de se contrapor aos corintianos na avenida; era necessário divulgar o São Paulo, por isso, o bloco era aberto a qualquer folião que soubesse a letra do samba, independente do clube a que pertencesse.

Para Valdir Leandro, da comissão de carnaval dos Gaviões da Fiel, a participação no desfile de blocos começou com uma forma de exaltar o Corinthians e reunir os colegas de torcida numa época do ano em que havia pouco movimento. Segundo Ângelo Vasanella, diretor geral de carnaval, o desfile era uma das várias atividades sociais do grêmio, como o futebol de salão e os jogos de baralho.

O bloco do Peixão, estreante de 1979, congregava mais de 30 torcidas organizadas e era capitaneada por Torcida Jovem. A proposta dos alvinegros do litoral era ao mesmo tempo fortalecer os laços da ATOS e as relações com as outras grandes torcidas da capital.

A participação conjunta de corintianos, são-paulinos e santistas no carnaval da Avenida Tiradentes não era mera coincidência, mas um projeto alinhavado pelas lideranças dos três grêmios. Além da conscientização dos torcedores a ATOESP atuava reivindicando mudanças junto às esferas de direção do futebol. O Campeonato Paulista de 1979 foi um marco das reivindicações coletivas e contou com uma promessa de insurreição partindo das arquibancadas.

Na visão de Hélio Silva, os jogos com menos de 48 horas de intervalo mostravam o desejo de explorar o torcedor que unia os presidentes dos clubes e da Federação Paulista de Futebol. Por isso, o boicote encontraria acolhida dentre todos os frequentadores, conscientes dos interesses envolvidos na tabela do campeonato. Perguntado se temia represálias pelo boicote, garantia que não, “pois não se trata de manifestação política”.

O caminho a ser trilhado seria debatido na reunião da ATOESP, com a participação dos Gaviões da Fiel, Torcida Jovem do Santos, Torcida Uniformizada do São Paulo e Leões da Fabulosa, em outubro de 1979. 

O boicote era uma indesejada realidade para Cosmo Freitas, da Torcida Jovem do Santos. Nenhum torcedor gostava de perder uma partida do seu time, mas era necessária alguma atitude. A visão do presidente da ATOESP, Flávio La Selva, divergia do restante do grupo. O receio do corintiano era de que a iniciativa não conseguisse ser implementada e a associação passasse ridículo.

Contudo, La Selva reconhecia que, mesmo sem uma campanha organizada, o público nos estádios diminuía gradualmente. “Antigamente uma partida entre o Corinthians e um time pequeno recebia de 33 a 39 mil pessoas. Hoje a média caiu para menos de 15 mil. A mesma coisa acontece com o Santos. A culpa desse fenômeno, para o fundador dos Gaviões da Fiel, era da Federação Paulista de Futebol e seu campeonato bagunçado, mas era importante que as torcidas pensassem suas ações para não perderem força. “Eu sei que temos um peso muito forte. Porém, é preciso entrar numa briga destas certos da vitória. Se houver unanimidade para se fazer um boicote, tudo bem. Caso contrário, o negócio é buscar outras alternativas.”

A solução das torcidas seria tomada em assembleia e poderia decretar uma greve de torcedores inédita no futebol brasileiro. Em 16 de outubro, a reposta da ATOESP era em forma de manifesto. A carta endereçada à Federação Paulista de Futebol foi distribuída a rádio e jornais da capital e retomava reivindicações feitas pelos grêmios desde 1975, antes ainda da conformação da associação:

O primeiro ponto do manifesto versava sobre a revalorização da rivalidade entre os grandes clubes. No Campeonato Paulista um clássico podia acontecer até 8 vezes, o que banalizava a disputa e diminuía o interesse do torcedor. A ATOESP reivindicava um calendário mais consciente para o torneio estadual, pois o torcedor se sentia enganado por um sistema de turno e returno que não levava à final. Como solução pediam um campeonato disputado em turno e returno com todos os times jogando entre si e os vencedores de cada etapa como finalistas. O Campeonato Paulista deveria ainda servir como classificatória para o Campeonato Brasileiro, o que também contribuiria para o aumento da competitividade e interesse do público. E por fim, o sistema de disputa por chaves deveria ser abolido, pois proporcionava conchavos entre os clubes, o que atingia a credibilidade das disputas.

O manifesto prosseguia com uma reflexão sobre a injustiça dos valores dos ingressos. Os torcedores sentiam-se lesados por acompanharem as fases de classificação e sofrerem um reajuste abusivo nas entradas para as finais. A sugestão era de que a majoração deveria ser feita apenas nos ingressos mais caros, como o setor de numeradas, poupando o povo das gerais e das arquibancadas. “Não seria uma forma de melhor distribuir a renda nacional?”

Os torcedores pontuavam que não seriam as promoções, de caráter esporádico, que levariam mais público aos estádios, mas mudanças estruturais como mais segurança e conforto e tabelas organizadas.

Por fim, reivindicavam a saída dos presidentes dos clubes do conselho arbitral da FPF, por acreditarem que os mandatários não pensavam no bem geral, apenas nos seus clubes.

O documento foi assinado por 25 torcidas organizadas: Gaviões da Fiel, Torcida Jovem do Santos, Torcida Uniformizada do Palmeiras, Torcida Uniformizada do São Paulo, Leões da Fabulosa, Povão Torcida Unida, Furacão Santista, Torcida Tricolor Independente, Torcida Acadêmica do Palmeiras, Mancha Verde, Camisa 12, Tubarões Santista, Grêmio Alviverde – Gama Corintiana, Torcida Palchopps, Terremoto Santistas, Força Independente do Palmeiras, Brasões da Fiel, Paz no Verdão, Tico (Torcida Independente Corintiana), Atômico Magia Alvinegra, Periquitos de Poá, Inferno Verde e Mosqueteiros do Timão.

Segundo os representantes do movimento, a ideia era que os dirigentes do futebol paulista ouvissem os torcedores com mais frequência; para isso, a ATOESP pleitearia assentos no conselho arbitral da Federação Paulista de Futebol para participarem diretamente da organização do regulamento e das tabelas do torneio estadual. Para os torcedores, um campeonato de vinte times, como o de 1979, era um problema quanto ao seu número de jogos e só se sustentava por servir aos interesses políticos de Nabi Abi Chedid, presidente da FPF. Contudo, todos os presidentes de clubes também eram culpados, pois chancelavam o regulamento no conselho arbitral, antes do início do torneio.

A grande quantidade de jogos onerava o torcedor não apenas com ingressos, mas também com os custos das caravanas, e, segundo as lideranças ouvidas pela Folha de S. Paulo, estava cada vez mais difícil encher um ônibus. Uma viagem de São Paulo a Ribeirão Preto custava ao torcedor, na época, aproximadamente 750 cruzeiros, cerca de um terço do salário mínimo.

Contudo, a maioria dos pedidos das torcidas permaneceram ignorados pela Federação Paulista de Futebol e teriam de esperar décadas para serem ouvidos. Muitas das pautas consideradas parte de um futebol organizado surgiram das reivindicações das arquibancadas, porém, sem os devidos créditos a seus formuladores.

A luta dos torcedores da década de 1970 pelo reconhecimento do futebol como um lazer popular se prolongou ao longo dos anos seguintes, porém, passaria a lidar com mais frequência com os problemas vindouros da rivalidade clubística e dos atos violentos, como veremos no próximo texto da série.