Conforto pra quem?

Quando eu era menino – e nem mais tão menino assim, já trabalhando – ir ao futebol, especialmente numa final, era uma epopéia.

Junto a uma centena de milhares de pessoas, você se deixava entulhar num ônibus no centro da cidade para ser despejado no Morumbi, ainda a léguas do estádio. À distância, ele parecia um castelo medieval, cercado por soldados a cavalo e guerreiros com suas bandeiras, entoando cânticos de batalha. Em volta, um verdadeiro burgo, uma feira exalando os odores de seus leitões em forma de gordurosas linguiças aceboladas ou vistosos pernis exibidos, encharcados de vinagrete. Archotes alumiavam o fim de tarde, bumbos marcavam o passo, enquanto a horda subia as rampas do castelo, tangida pelos cacetetes da PM.

Lá dentro, nos acotovelávamos nas marquises de cimento frio, muitas vezes lado a lado, e de lado para o campo de jogo. Homens, homens, homens, e algumas mulheres, gritando aos gols de seus times, defesas de seus goleiros e erros dos árbitros – sempre dos outros. Radinho (ou radião) no ouvido, misturando os “é fogo” de Fiori, “ripa na chulipa” de Osmar e o “me chuta, me chuta” de Silvério com os palavrões mais cabeludos que a língua de Camões concebeu. O vendedor de cerveja subia e descia pela bancada com uma geringonça nas costas, tipo Caçafantasmas, enchendo os copos. Amendoim abundava. Voavam eflúvios de excitação, fogos e papel higiênico. O estádio tremia, batia como um barco.

Chegar ao estádio levava uma hora, comprar ingresso levava uma hora, entrar no estádio durava uma hora, esperar pelo jogo levava uma hora, o jogo durava duas e a conta recomeçava, espelhada, até o momento em que, queimado pelo sol, rouco de gritar, febril de tomar vento suado e sujo por todos os orifícios, enfiava-se a chave na porta de casa, ato final de uma odisséia de proporções cartaginesas.

Tudo isso e, não raro, pra ver um zero a zero safado. Ou seu time perder. E, mesmo assim, voltar assim que der.

Fui a uma final hoje, no Maracanã. Saí de casa, de carro, às 15h10. Cheguei em 15 minutos. Comprei ingresso em menos de cinco. Entrei com o hino tocando, por uma das dezenas de portas, direto no meu lugar. sentei numa cadeira de plástico anatomicamente desenhada para suportar minha buzanfa. Você é levado a ela por uma simpática mocinha que fala seis idiomas. No intervalo, há banheiro para todos – com papel (que não voa mais). Casais namoram enquanto seus times duelam. Selfies espolcam. Palavrões há, mas poucos perto do passado. Não há mais amendoim ou Caçafantasmas, só refrigerante em copo de plástico. O deley do aplicativo impede que você ouça o jogo pelo rádio, substituído pelo bate-papo com o cavalheiro ao lado, de 19 anos, que não viu nem Túlio jogar no Botafogo. Perdeu, o time dele. Aplausos, inclusive dos vencidos. O estádio não tremeu sequer uma vez. Em cinco minutos, as poucas dezenas de milhares estão na rua, enchendo o metrô. Pegamos o carro no estacionamento. Estávamos em casa em menos de uma hora.

Melhorou, muito. Mas ficou uma merda.

[Fonte: Blog do Daniel Perrone, texto de Eduardo Castro/Globo Esporte]