A participação feminina nas organizadas: algumas reflexões

Por Rosana da Câmara

A participação feminina em torcidas organizadas constitui uma lacuna nos estudos que começa, enfim, a ser preenchida. Alguns trabalhos já concluídos (e outros tantos em andamento) revelam a importância doengajamento das mulheres no futebol a partir, também, da sua inserção na história desses agrupamentos. Gostaria de recomendar a leitura de duas dissertações de mestrado defendidas em 2018 por pesquisadoras que se debruçaram sobre este campo de análise. “As torcedoras querem (poder) torcer”, de autoria de Carolina Farias Moraes, realizada no Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos da Universidade Federal da Bahia, apresenta as relações de sociabilidade e estilo de vida de torcedoras da Bamor e d’Os Imbatíveis, as maiores do estado da Bahia. Traz ainda visões de torcedoras presentes do I Encontro Nacional de Mulheres de Arquibancada, organizado pela equipe do Museu do Futebol (Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo),realizado no dia 10 de junho de 2017, no estádio do Pacaembu. “Resistência e empoderamento” foi a bandeira do evento inédito que reuniu cerca de 300 torcedoras integrantes de mais de 40 torcidas e coletivos de futebol, de 13 estados brasileiros (PR, RS, SC, SP, RJ, BA, CE, ES, GO, MG, PA, DF e PE) que ali compartilharam “experiências, conquistas e problemas encontrados em suas torcidas sejam elas organizadas ou não” (p.86).Carolina, através da observação participante e dos diálogos estabelecidos, desenha um panorama rico, complexo e plural que torna evidente a contribuição destas torcedoras para fazer valer sua paixão futebolística nas arquibancadas. 

https://ludopedio.org.br/agenda-de-eventos/1o-encontro-nacional-de-mulheres-de-arquibancada/

Já o trabalho de Daniela Torres De Araújo “Lugar De Mulher É No Futebol: Dulce Rosalina e a representatividade feminina nas torcidas”, desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense, se detém sobre a representação da figura da mulher torcedora de futebol através dos relatos presentes na mídia esportiva. Por meiode reportagens veiculadas no Jornal dos Sports, a autora analisa a trajetória icônica de Dulce Rosalina (1935-2004), primeira mulher líder de torcida organizada no Brasil e torcedora de maior destaque do Club de Regatas Vasco da Gama, demonstrando os obstáculos encarados no exercício da sua liderança, como sexismo, impedimento político no Vasco da Gama e violência na arquibancada. Dulce fundou a Torcida Organizada do Vasco em 1944, onde permaneceu por 21 anos, e da qual desligou-se por divergências políticas, ficando à frente a partir de então da RenoVascão, criada em 1977. 

http://torcidasdovasco.blogspot.com/2013/10/renovascao-2004-homenagem-dulce-rosalina.html 

Militante das arquibancadas e fora delas, sua participação no I Congresso de Torcidas Organizadas dos Grandes Clubes, em 1987, ocorrido no auditório do Internacional, no Beira-Rio (Porto Alegre) foi destaque na imprensa. Na cobertura do evento que durou dois dias e produziu o documento “Carta de Porto Alegre”, ela foi citada como um dos chefes devotados a sua torcida, assim como a Toninha da Flamante e Flavio La Selva da Gaviões da Fiel, entre outros presentes. Muitas outras mulheres dedicaram e dedicam suas vidas ao futebol, sendo este um capítulo importante na enciclopédia do futebol brasileiro, ainda em construção. 

Me encantei com a figura da Dulce quando iniciei minha pesquisa sobre torcidas em meados da década de 1990. Nos levantamentos em jornais dos anos 80 a sua atuação era realçada. Constitui um exemplo emblemático do que pesquisadores têm denominado de “torcedor/a-símbolo”:alguém que encarnava toda a torcida, manifestando o desejo incondicional e prioritário de viver e expressar sua paixão pelo clube. Em inúmeras ocasiões declarou:“Minha vida é meu time”. Essa é uma característica das torcidas criadas entre 1940 e 1960, conhecidas como carnavalizadas e familares. Marcados pelo empenho pessoal de certos indivíduos, que desempenhavam várias funções, não apresentavam uma estrutura mais formalizada, diferentemente das torcidas organizadas que surgem a partir do final da década de 1960 com regulamentos e hieraquias. 

https://terceirotempo.uol.com.br/que-fim-levou/dulce-rosalina-925

Quando realizei minha pesquisa sobre as torcidas jovens cariocas entre 1996 e 1998, me interessava compreendersentidos e significados atribuídos à paixão pelo futebol. Afinal, que sentimento seria capaz de reunir pessoas tão diferentes entre si, em suas trajetórias individuais e visões de mundo numa só voz, por um clube e por uma torcida? (Teixeira, 1998/2004). Durante o trabalho de campo soube da existência dos grupos femininos nas Jovens e logo me interessei em buscar uma aproximação. No entanto, segundo as lideranças entrevistadas, estes não eram bem estruturados e dificilmente as mulheres se tornavam lideranças por não terem o mesmo comprometimento que os homens, não se sentirem à vontade em situações de comando ou não quererem esta responsabilidade. Embora declarassem que o envolvimento feminino era crescente, sublinhavam, por outro lado, que não era constante. Um presidente me disse que considerava importante atrair mais mulheres, inclusive para mudar a imagem das torcidas perante a opinião pública, já que a visão negativa disseminada nos meios de comunicação reafirmava que as organizadas eram perigosas, não se constituindo em espaços seguros. Contudo, apesar de afirmarem que não somente aceitavam, como incentivavam a presença feminina, alguns relatos deixavam transparecer que as mulheres não vivenciam o futebol do mesmo modo que os homens. Visão que contrastava fortemente com os dados sobre as chefes de torcida e a participação das mulheres desde que o futebol foi introduzido no país nas primeiras décadas do século XX. Infelizmente, não consegui contactar nenhuma torcedora organizada naquela época. Sendo pesquisadora mulher e as sedes frequentadas por homens, era esperado que fosse visitá-las, mas não que permanecesse por lá durante muito tempo. Não conhecer alguém “de dentro” também dificultava, pois sempre havia incerteza em relação aos motivos do meu trabalho. A despeito dessas dificuldades fui recebida em algumas sedes e contei com o auxílio de torcedores que se dispuseram a conversar e contar suas histórias. O conjunto dessas reflexões originou “Os perigos da paixão: visitando jovens torcidas cariocas”, dissertação de mestrado defendida em 1998 e publicada em 2004. Todavia, sempre acalentei a vontade de, no futuro, conhecer percursos e pontos de vista de torcedoras engajadas no dia-a-dia das torcidas e na mística da bancada. Inesperadamente, em 2019, surgiu a oportunidade de iniciar uma pesquisa nessadireção. Desde então, venho trocando passes, dialogando e aprendendo com as práticas de mulheres pertencentes às organizadas de diferentes gerações. Em 2020, com a pandemia, os contatos se intensificaram. A rede foi sendo ampliada e amplificada com a oportunidade de escutar as vozes e ver os rostos e as expressões destas personagens atuantes em várias agremiações, via meet, modalidade de encontro possível tendo em vista a crise sanitária e humanitária mundial. Esse conjunto de narrativas vem me descortinando novas possibilidades de viver e entender o fenômeno do torcer e os segredos da alquimia da “paixão”, sob a batuta das entrevistadas. Tornar públicas as aventuras, situações jocosas, negociações e superações para viver e defender essa emoção, contribuirá para dar visibilidade aos “femininos” na sua relação com o universo do futebol e o seu quinhão na produção da experiência torcedora. As dificuldades vividas pelas interlocutoras nas tentativas de driblar o sexismo e o machismo mostram que esta partida ainda está rolando. Aestratégia de invisibilizar, não valorizar ou mesmo inferiorizar a atuação das mulheres não se restringe ao futebol, mas pode ser observada em diferentes campos e esferas da vida social. Conhecer, abraçar e compartilhar as memórias dessas aficionadas no esporte mais popular do país é o primeiro passo para fazer justiça ao espírito plural,festivo e combativo das arquibancadas. Os trabalhos aqui sugeridos e os vídeos do I Encontro de Mulheres de Arquibancada constituem uma ótima entrada em campo, neste jogo decisivo pela democratização dos espaços do futebol, enquanto outras iniciativas ainda estão sendo gestadas. Deixa a bola rolar, tem muito jogo ainda.

Para saber mais:

Araújo, Daniela Torres De.  ​Lugar de mulher é no futebol: Dulce Rosalina e a representatividade feminina nas torcidas. PPGCOM /UFF, 2018. https://app.uff.br/riuff/handle/1/16404

Moraes, Carolina Farias. As torcedoras querem (poder) torcer. Mestrado em Cultura e Sociedade/UFBA, 2018. https://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/30758

Teixeira, Rosana da Câmara. Os perigos da paixão: filosofia e prática das torcidas jovens cariocas.Dissertação. PPGSA/UFRJ, 1998. https://ludopedio.org.br/wp-content/uploads/Teixeira_M_-_Torcidas_Jovens.pdf

Teixeira, Rosana da Câmara. Os perigos da paixão: visitando jovens torcidas cariocas. SP: AnnaBlume, 2004.

I Encontro Nacional Mulheres de Arquibancada. Parte I.https://www.youtube.com/watch?v=hWW2htJh2Bc

I I Encontro Nacional Mulheres de Arquibancada. Parte II.https://www.youtube.com/watch?v=fEXArj5BcjU