Estádios de Futebol: espaços de experiências, formação e memórias
por Silvio Ricardo da Silva
Os estádios para uma boa parcela das pessoas é um espaço de experiências, formação e memórias. Independente de frequentá-lo ou não, homens e mulheres viram ao longo dos tempos os estádios serem referências nas cidades que os possuem. É a partir da existência do estádio que se vê o transitar de milhares de pessoas e que se percebe a euforia e a energia de torcedoras e torcedores pelas ruas. O estádio é por muitas vezes o motivo para o turista visitar uma cidade ou um bairro. Para quem ama o futebol, um determinado estádio, por vezes, ganha o status de um espaço sacralizado e existem torcidas que os denominam de “catedral”.
No Brasil, com exceção do Estádio Boca do Lobo em Pelotas, construído em 1908, é partir da década de 1910, que vimos o surgimento dos primeiros estádios, sendo quase que na sua totalidade, sob a administração de clubes. Há que se destacar no cenário futebolístico brasileiro a construção e inauguração em 1919 do Estádio das Laranjeiras, sede do Campeonato Sul-Americano naquele mesmo ano. Outro estádio que sobressai na historiografia do nosso futebol é São Januário. O estádio do Clube de Regatas Vasco da Gama, construído a partir da contribuição de torcedores e associados, tornou-se em 1927 o maior estádio brasileiro até quando foi construído o Pacaembu em 1940. O estádio de São Januário possui um histórico de eventos de grande evidência na política e na cultura do nosso país. Já o estádio do Pacaembu, entre outros motivos, tem grande relevância, por ser um primeiro grande estádio de administração pública no Brasil.
A década de 1950 inaugura a construção dos estádios monumentais, com gigantesca capacidade de público, sendo sua maior referência o Maracanã, que foi durante décadas, considerado o maior estádio do mundo. As décadas subsequentes foram palco da construção, por todo Brasil, de outros grandes estádios, sobretudo durante os anos que tivemos sob a administração dos governos militares, após o Golpe de 1964.
A partir da década de 90, sob a influência de mudanças significativas nos estádios ingleses e sob uma construção discursiva de uma lógica de segurança e lucros, vimos uma parte dos estádios brasileiros sofrerem reformas ou serem construídos, e tentarem, a partir de suas administrações, excluir uma parcela da torcida, considerada como “pessoas não desejadas” para esses novos espaços. Importante dizer que foi apenas uma pequena parte dos estádios que se reconfiguraram como arenas esportivas. Estudo de Vieira (2016) aponta que a imensa maioria dos estádios brasileiros é simples e com pequena capacidade de público. Todavia, o imaginário contaminante das arenas, que abarcam os importantes campeonatos e aparecem na televisão, é o que predomina ao se pensar o que é um estádio de futebol.
Em resumo, aqueles e aquelas que inicialmente foram aos estádios na condição de assistentes, espectadores, foram perdendo espaço (ou se transformando) para quem tinha pertencimento clubístico. O torcer, que entre as décadas de 1910 e 1940 se expressa de forma individualizada, passa a ter também a ser propagado de maneira coletiva e organizada. Nessa configuração de coletividade, primeiramente (década de 1940) surgem as Torcidas Uniformizadas, com proximidade às administrações dos clubes, e no final da década de 1960, surgem as Torcidas Organizadas, que reivindicavam um papel mais independente e crítico em relação às referidas administrações. É a partir dessa organização coletiva do torcer por um determinado clube, que pudemos assistir aos grandes espetáculos vindos das arquibancadas com suas bandeiras, papéis picados, fogos de artifício, cânticos e coreografias.
Esse modelo de estádio e de torcidas que predominou durante décadas sofre uma pressão de várias instituições (mídia, clubes, federações, governos, etc.), no sentindo se submeterem a um controle nas suas respectivas manifestações. O imaginário neoliberal, reformista apostou na transformação do torcedor e da torcedora apaixonados e passionais em clientes consumidores.
Obviamente, que mudanças de ethos e procederes não se dão da noite para o dia e a resistência é algo inerente a um processo violento de dominação como esse que aconteceu em relação aos estádios no Brasil nessas últimas décadas.
Temos modelos de estádios e de torcidas em disputa. A temática tem interessado a pesquisadores e pesquisadoras. Gilmar Mascarenhas (2001), Christopher Gaffney (2008), Jonh Bale (1993) e Richard Giulianotti (1999), são importantes precursores nesses estudos e incentivadores de uma geração mais recente que sustenta a relevância de novas pesquisas. Posso citar aqui os trabalhos de Priscila Campos (2016) Christian Vieira (2016), Fernando Ferreira (2017) e Mariana Mandelli (2018), entre outros.
Muitas são as possibilidades de estudos sobre a temática dos estádios, todavia é urgente refletir e discutir juntos aos administradores do futebol se a dose do remédio não foi forte demais? Se a pretensa elitização dos estádios brasileiros afastou quem se predispunha a estar presente, acompanhando seu clube, fielmente, em condições por vezes adversas.
O estádio que conhecemos com milhares de torcedores era hostil para uma determinada parcela de pessoas, sobretudo mulheres, crianças e idosos, mas era economicamente inclusivo e propiciava uma série de experiências a partir da jocosidade, do inusitado, das manifestações livres e criativas. As regras e o controle impostos hoje nas arenas brasileiras inibem essas possibilidades e mais grave ainda, impedem a formação do jovem torcedor. Muitos torcedores tiveram o estádio como um espaço de formação, não só da paixão clubística, como também de um proceder junto à multidão. Conhecíamos intimamente nossos estádios, seus tempos, suas práticas e quem frequentava os nossos “pedaços”.
Essa formação era passada de geração para geração e a partir dela o futebol se configurou como uma grande paixão popular. Hoje, com os estádios caros e cheios de regras vimos uma quebra da presença constante que traz a intimidade, vimos uma série de normas que impedem as ações encantadoras das Torcidas Organizadas. Dessa forma, prevejo um possível desencanto por partes de crianças e jovens no que tange ao interesse pelo futebol. Estádio é lugar de memória e não de ostentação.
É urgente que as administrações dos estádios deixem de excluir, deixem de normatizar e passem a dialogar com quem é de direito: torcedoras e torcedores, nos seus mais diferentes matizes. A festa precisa voltar a seduzir. Para a sobrevivência do futebol brasileiro o estádio engalanado é fundamental.