Isso é democracia?

É preciso ter a consciência de que não se trata de uma questão jurídico-normativa-policial, de repressão com base no arbítrio e no uso da força física.

Pode-se gostar ou não da existência das Torcidas Organizadas de futebol. Certamente, há argumentos para defendê-las e outros tantos para atacá-las. Não obstante, independente das preferências individuais e dos problemas comportamentais enfrentados nas últimas décadas, deve-se reconhecer que as torcidas são uma realidade concreta e incontornável do futebol profissional contemporâneo.

Desde a segunda metade do século XX, as agremiações torcedoras são parte constitutiva do espetáculo futebolístico e conformam uma espécie de contracultura juvenil que têm nos dias de hoje projeção internacional. Existem hinchadas, barras e ultras não somente na América do Sul e na Europa. Elas fazem-se igualmente presentes em países da África, da Ásia e da América do Norte. Atualmente, até no soccer dos Estados Unidos é possível constatar sua presença nos estádios de futebol.

Sendo assim, é forçoso dizer que as Torcidas Organizadas (TOs) não acabarão por decreto ou por simples vontade de determinadas autoridades, segundo circunstâncias críticas de exacerbação do ódio, da rivalidade e da intolerância intergrupos. Também não se gosta da pobreza, da corrupção, da desigualdade social, da violência e, no entanto, convive-se com elas há muitos e muitos anos em nossa sociedade. Sabemos que tal convivência decorre, justamente, porque medidas ineficazes, mal formuladas e/ou salvacionistas vêm sendo adotadas como antídotos miraculosos e midiáticos que tratam a conjuntura e não a estrutura, que lidam com os efeitos e não com as causas da maior parte desses problemas.

Torcidas Organizadas são, pois, um dado concreto da realidade, constituem formas de pertencimento e identidade na vida de milhares de jovens que vivem na periferia e nos grandes centros urbanos do Brasil contemporâneo. Deve-se lembrar também que tais associações existem há pelo menos setenta e cinco anos e acompanharam praticamente toda a história do futebol profissional no Brasil.

Com o tempo, as TOs cresceram e fragmentaram-se em vários grupos, cada qual com seu tamanho e com sua característica particular. Além disto, criaram símbolos e ritos, forjaram estilos de vida e sedimentaram-se no imaginário associativo dos jovens. Nos últimos anos, marginalizaram-se, isto é, protagonizaram atos de vandalismo premeditado e de apologia da violência extrema – covardes linchamentos até a morte e uso de armas de fogo –, passando a ser estigmatizadas pela opinião pública; mas também se institucionalizaram, ou seja, construíram uma estrutura organizacional autônoma, com sedes e subsedes, com lojas e espaços próprios de convívio, com festas e campanhas beneficentes (doação de sangue, arrecadação de alimentos, ajuda a vítima de enchentes e outros desastres, entre outras formas de solidariedade em sua grande maioria desconhecidas do senso-comum).

Nos últimos anos, em âmbito internacional, algumas torcidas organizadas tornaram-se protagonistas de movimentos de resistência ao processo de hiper-mercantilização do futebol globalizado, o chamado “futebol moderno”, profundamente influenciado pela lógica midiática e fortemente ligado à complexa produção do esporte-entretenimento.

São essas vanguardas torcedoras – com suas faixas, suas bandeiras e seus cantos – que têm colocado em pauta algumas das consequências negativas desse processo mercantil, tais como a corrupção de dirigentes, a imposição dos interesses das emissoras de televisão, em detrimento das necessidades dos frequentadores dos estádios, e a elitização dos eventos futebolísticos. Além de afastar as classes menos abastadas das “arenas”, essa elitização tem contribuído para minar uma cultura popular de torcer e “esfriar” a atmosfera das arquibancadas. Elitizado, o futebol tende a ser, cada vez mais, concebido como um evento para se olhar, onde a liberação de emoções intensas deve ser contida.

Uma vez que as torcidas organizadas representam uma voz contrária ao “futebol moderno”, apresentando-se como um grupo dissidente, pode-se afirmar que sua estigmatização contribui para manter o status quo do poder futebolístico. Afinal, ela retira a legitimidade das ações e falas dessas torcidas, dificultando, assim, sua participação no exercício do poder político e as impedindo, consequentemente, de se transformarem num desafio real ao utilitarismo mercantil e ao aburguesamento do espetáculo esportivo.

Vistos como fontes ilegítimas de informação e reflexão, os torcedores, em geral, e os torcedores organizados, em particular, não são consultados nos processos decisórios sobre o calendário do futebol. Suas demandas, como o abusivo horário dos jogos em meio de semana, que começam às 22h e terminam depois de meia-noite, não são escutadas nem muito menos atendidas. Donde se conclui que a estigmatização desse segmento contribui, em última instância, para a exclusão do torcedor crítico dos estádios.

O estigma é simbolicamente construído por meio de uma série de narrativas veiculadas, entre outros lugares, pelos meios de comunicação. Nessas narrativas, observa-se o emprego de diversas figuras de linguagem. Entre elas, destacam-se duas metáforas: a “metáfora da guerra”, que combina as ações das torcidas organizadas e as consequências delas para os demais torcedores, com termos extraídos do campo semântico da luta armada, bélico-militar, revestida da imagem unívoca da hostilidade, do perigo e do medo; e a “metáfora biológica”, que define seus integrantes em termos que os animalizam ou os patologizam.

Na vertente determinístico-biológica, os torcedores organizados são comparados, entre outras imagens, a “animais”, a seres “irracionais”, a “terríveis excrescências”. Todas essas alusões impõem sobre esses torcedores um sentido pejorativo e estabelecem uma polarização simbólica, nitidamente maniqueísta, entre um “eles” – torcedores bárbaros – e um “nós – torcedores civilizados.

Ainda que as brigas grupais entre torcedores organizados se restrinjam a uma minoria – entre 5 e 7% desses torcedores, segundo as estimativas de Maurício Murad –, elas possuem um efeito em cadeia que denigre e contagia a identidade social de todos os seus integrantes. A violência dessa minoria também contribui para acirrar a rivalidade entre essas torcidas. Além de causar prejuízos materiais e humanos, tal violência intergrupos opera como um elemento de desmobilização política das torcidas organizadas, já que diminui sua capacidade cooperativa de atuar como uma força de resistência junto aos demais atores do futebol.

Em contrapartida, vale destacar a experiência da mediação de conflitos desenvolvida por lideranças das próprias Torcidas Organizadas. Trata-se da iniciativa de promoção do diálogo entre elas, as autoridades públicas e as entidades do futebol profissional. Estes encontros vêm sendo realizados pela Federação das Torcidas Organizadas do Rio de Janeiro (FTORJ) desde 2008 e, mais recentemente, pela Associação Nacional das Torcidas Organizadas do Brasil (ANATORG), fundada no final de 2014.

Entidades que se inspiram nos trabalhos de organizações anteriores, dos anos 1970 e 1980, como a Associação das Torcidas Organizadas do Rio de Janeiro – a ASTORJ – e a homóloga de São Paulo, a ATOESP. Elas visam proteger os interesses dos torcedores organizados, tendo em vista o contexto social e histórico atual, em que esses torcedores sofrem intensa repressão e asfixia econômica, com o encarecimento do preço do ingresso.

Historicamente, pode-se dizer que as torcidas acompanharam, pari passu, as distintas configurações da sociedade brasileira nos anos 1940, na década de 1960 e no decênio de 1980. Não se trata, portanto, de um ente à parte, mas de uma expressão muito sintomática do que é o futebol e do que é a sociedade brasileira. No atual momento histórico, seu formato não poderia ser imune a essas configurações sociais, marcadas pela segregação espacial, pela intolerância social, pelas diversas formas de exclusão urbana, o que não justifica, evidentemente, parte de suas ações vandálicas.

Essa realidade tem, pois, de ser enfrentada, não com medidas precipitadas e tomadas no calor dos acontecimentos. A torcida única nos clássicos estaduais nada mais é que o reconhecimento da vitória da intolerância pelo poder público, incapaz de formular alternativas fora dos dispositivos da repressão e da criminalização. Convém frisar que a adoção dessa medida já fracassou em diversos locais em que foi experimentado, incluindo os derbies na Argentina. Deve-se assim enfrentar essa situação com uma compreensão qualificada da natureza do problema, com um acompanhamento contínuo da questão, com ações enérgicas que articulem, como propõe sabiamente o sociólogo Maurício Murad, repressão, prevenção e reeducação.

Assim como a solução para a violência não é construir mais presídios, a resolução da problemática das Torcidas Organizadas não passa por extingui-las indistintamente, colocando-as na vala comum da clandestinidade ou da invisibilidade legal. Não é este o papel de um Estado democrático. Ao contrário dos estereótipos mais comuns – vândalos e vagabundos –, os integrantes das entidades torcedoras são, como pudemos testemunhar em nossas pesquisas de campo, desenvolvidas in loco nas quadras das torcidas e nas arquibancadas dos estádios, em sua maioria adolescentes trabalhadores, jovens estudantes, pais de família e até mesmo mães e mulheres das mais diversas idades.

É uma vã ilusão considerar que a mera extinção acarretaria o fim das torcidas. O exemplo mais candente foi a interdição da Mancha Verde e da Independente em 1995, logo após a “batalha campal do Pacaembu”, há mais de vinte anos. É preciso recordar que, naquela época, o promotor responsável pela proibição chamava-se Fernando Capez, o mesmo suspeito hoje na CPI da Merenda, e que à época ganhou notoriedade na mídia ao dar início a uma cruzada contra as chamadas facções.

O que ocorreu após aquele ato isolado e precipitado de proibição, anunciado por Capez? Como efeito perverso, uma vez proibidas, essas duas torcidas converteram-se em associações recreativas de Escolas de Samba. Tornaram-se desde então muito mais fortes do que eram antes da medida, simplista e discricionária. Como um imperativo da realidade, com o passar do tempo, a Justiça reconheceu que as mesmas podiam voltar a atuar nas arquibancadas de futebol, portando suas camisas, seus instrumentos musicais e suas faixas.

É preciso assim aprender com as lições do passado, e com esta lição da “batalha campal” do Pacaembu em especial, para não incorrer hoje nos mesmos erros de outrora. O primeiro passo é ter a consciência de que não se trata de uma questão meramente jurídico-normativa-policial, de repressão com base no arbítrio e no uso da força física. Sabemos que nem decretos nem cassetetes, juntos a spray de pimenta e a bombas de efeito moral, resolvem. Ao contrário, acirram ainda mais os ânimos de ambas as partes que estão no front, os policiais e os torcedores.

Talvez seja esse o ponto mais limitador no entendimento do fenômeno: colocadas de maneira exclusiva como um “caso de polícia”, essas agremiações são tacanhamente reprimidas, sem que haja a formulação consequente e preventiva de políticas continuadas de investigação, sem que se verifique o uso da inteligência policial, sem que exista a capacidade de antecipação dos locais potenciais de conflitos e sem que se aplique a punição devida aos indivíduos integrantes de torcidas organizadas, aqueles diretamente envolvidos nos confrontos.

Sem perder de vista, portanto, a necessidade de realizar ações repressivas pontuais e de punir individualmente, nos estritos marcos da lei, aqueles que se engajam em delitos, em vandalismos e em práticas criminosas, considera-se necessário o investimento coletivo paralelo na criação de novos canais de comunicação com os torcedores organizados, posto que eles continuarão a existir. São imprescindíveis a elaboração e a aplicação de projetos sociopedagógicos dirigidos aos torcedores e a suas associações, como os que existem há anos, por exemplo, na Alemanha, com o devido apoio do governo federal, da federação de futebol – a Bundesliga – e dos clubes alemães.

Ainda que a realidade brasileira possua singularidades evidentes, esses projetos preventivos e reeducativos podem servir de norte para o Brasil, pois apostam no reconhecimento do torcedor como um sujeito coletivo e instância de diálogo legítima no universo do futebol. Legitimidade que é fundamental para a transformação criativa e pacífica dos conflitos. Afinal, se a solução para tais confrontos for imposta de “cima para baixo”, e se for aceitável apenas para uma parte, então esta não será uma ação realmente consensual, mas uma forma antidemocrática e violenta de lidar com o problema. Mais um simples instrumento arbitrário para a dominação e para a opressão.

[Fonte: Ludopédio]